Valterlucio Campelo: “Infeliz a nação que precisa de heróis.” B. Brecht. Será?

A frase pertence a uma peça de Bertold Brecht (A vida de Galileu) escrita entre 1938 e 1939, e integra a fala de Andrea Sarti, logo que o astrônomo renunciou à sua teoria heliocêntrica para não ser martirizado como ameaçava a inquisição. Para ele (Galileu), a ciência não precisava de um herói morto, mas de pragmatismo. Brecht, o marxista ferrenho, queria dizer que uma sociedade ideal, comunista, dispensava heróis, já que todos os problemas teriam solução coletiva. Ele aplainava a coletividade. Não viveu para ver que em todas as experiências do regime que defendia, o herói que detestava se tornou imprescindível.

Ilustrando meu ponto, entrego uma lista com alguns dos heróis que surgiram a partir do século XVIII para ficar mais compreensível. Vejamos:

George Washington (1732-1799, EUA): Líder da independência americana, herói da democracia e fundação nacional; Napoleão Bonaparte (1769-1821, França): General e imperador que espalhou ideias revolucionárias pela Europa, visto como herói militar; Simon Bolívar (1783-1830, Venezuela): Libertador de várias nações sul-americanas do jugo espanhol, herói da independência; Abraham Lincoln (1809-1865, EUA): Presidente que aboliu a escravidão, herói da igualdade e união nacional; Winston Churchill (1874-1965, Reino Unido): Primeiro-ministro durante a II Guerra Mundial, herói da resistência ao nazismo; Mahatma Gandhi (1869-1948, Índia): Líder da independência indiana via não-violência, herói da paz e desobediência civil. Rosa Parks (1913-2005, EUA): Ativista que deflagrou o movimento pelos direitos civis ao recusar ceder assento em ônibus;

Do lado socialista, a listinha é bem indigesta se considerarmos os assassinatos, a miséria e as ditaduras que promoveram. É certo que Brecht renegaria todos eles, como renegou Stálin embora admirasse Lenin. Mesmo assim, para os que seguiram ou seguem a cartilha canhota, são heróis:

Vladimir Lenin (1870-1924): Fundador da URSS, visto como herói da Revolução de Outubro (1917). Seu mausoléu em Moscou é um símbolo, e ele é retratado como o arquiteto do socialismo; Josef Stalin (1878-1953): Líder supremo, promovido como “pai da nação” durante a industrialização e a II Guerra Mundial, apesar das purgas e fome. Seu culto foi desmontado pós-1956; Yuri Gagarin (1934-1968): Primeiro homem no espaço (1961), herói da conquista científica soviética, simbolizando o progresso comunista; Mao Zedong (1893-1976): Fundador da República Popular, herói da Revolução Chinesa e da Longa Marcha (1934-1935). Seu “Livro Vermelho” e retratos são ícones, apesar das críticas ao Grande Salto Adiante e Revolução Cultural; Lei Feng (1940-1962): Soldado comum promovido como herói modelo do “homem novo socialista” – altruísta, dedicado ao Partido e ao povo; Fidel Castro (1926-2016): Líder da Revolução Cubana (1959), visto como herói anti-imperialista que derrubou a ditadura de Batista e resistiu aos EUA; Che Guevara (1928-1967): Revolucionário argentino-cubano, ícone global do comunismo, herói da guerrilha e da exportação da revolução (ex.: em Bolívia); Camilo Cienfuegos (1932-1959): Companheiro de Castro, herói da luta armada, simbolizando lealdade e sacrifício (morreu em acidente aéreo); Ho Chi Minh (1890-1969): Fundador do Vietnã comunista, herói da independência contra franceses e americanos. Sua imagem é onipresente, e Hanói tem um mausoléu em sua honra; Vo Nguyen Giap (1911-2013): General que liderou vitórias em Dien Bien Phu (1954) e na Guerra do Vietnã, herói militar do povo; Coreia do Norte (1948-presente)Kim Il-sung (1912-1994) e Kim Jong-il (1941-2011) – líderes dinásticos promovidos como heróis infalíveis, com cultos extremos (embora o regime seja mais autoritário que puramente comunista); Iugoslávia (1945-1992)Josip Broz Tito (1892-1980), líder partidário que uniu o país pós-II Guerra, herói da independência e do socialismo não alinhado; Nelson Mandela (1918-2013, África do Sul): Lutador contra o apartheid, herói da reconciliação e igualdade racial.

E então? Olhando para essas figuras em seu tempo e circunstâncias, dá para dizer que as respectivas sociedades deveriam dispensá-los? Do meu canto, penso que não. Desde que se conceitue o herói devidamente, com a compreensão dos tempos modernos, é bastante razoável dizer que das grandes causas surgem heróis necessários. A própria dinâmica dos processos sociais cria seus heróis não como seres imaculados ou autores e mobilizadores exclusivos das mudanças, mas como aglutinadores, intérpretes e, às vezes, mártires daquele movimento de transformação.

Os heróis de hoje não são, como Saladino ou Gengis Kahn no século XII, conquistadores amados pelos seus povos e exércitos, mas efetivos líderes de novas visões de mundo, de pautas surgidas em nosso contexto e limitados em seu campo de atuação, não mais por fronteiras nacionais, mas por razões éticas. O Papa João Paulo II não foi um herói, inclusive santificado? Independentemente de nossa visão particular, quem vai arrancar dom Hélder Câmara, Chico Mendes e Santos Dumont do panteão de heróis brasileiros?

O que não precisamos é de falsos heróis. Podemos dispensar todos aqueles que se pretendem salvadores da nação, os que assentados na mídia militante encabrestam os pobres e miseráveis com discursos e teses insustentáveis, enquanto vivem nababescamente como um Xeique árabe. Também podemos dispensar aqueles que se atribuem funções por fora da designação da nação, como se fossem portadores de saber divino nos enfiando regras com as quais não pactuamos.

Valterlucio Bessa Campelo escreve semanalmente nos sites AC24HORAS, DIÁRIO DO ACRE, ACRENEWSe, eventualmente, no site Liberais e Conservadores do jornalista e escritor PERCIVAL PUGGINA, no VOZ DA AMAZÔNIA e em outros sites. Seu último livro “Arquipélago do Breve” encontra-se à venda através de suas redes sociais e do e-mail valbcampelo@gmail.com.

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