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Jurista que tratou Forças Armadas como Poder Moderador diz que foi mal interpretado

A maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a Constituição não determina que as Forças Armadas podem assumir o papel de Poder Moderador para resolver conflitos políticos entre os três poderes da República. Na segunda-feira (1), quando a decisão foi tomada, o jurista Ives Gandra Martins, cuja teoria foi usada por defensores dessa possibilidade, disse à reportagem que seu pensamento foi mal interpretado pela sociedade.

Autor de livros sobre a Constituição Federal, ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho, Ives Gandra Martins nega que o artigo 142 da Constituição Federal dê às Forças Armadas o poder de realizar uma ruptura institucional em eventual crise entre Judiciário e Legislativo. Para Martins, seu entendimento sobre a normativa foi deturpado por integrantes do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

Seis dos onze ministros da Corte votaram de forma contrária ao Poder Moderador, enquanto outros cinco ainda não registraram seus votos. Mas a questão já havia sido decidida na prática pelo Alto Comando do Exército no final de 2022.

Na ocasião, o tema foi discutido no colegiado de generais e o então comandante do Exército, Marco Antônio Freire Gomes decidiu que o artigo 142 da Constituição não poderia embasar uma intervenção legal das Forças Armadas no resultado das últimas eleições. A Marinha e a Aeronáutica não têm recursos militares suficientes para implementar esse tipo de decisão.

A atual votação do STF ocorre no momento em que o golpe de 1964, chamado de Revolução de 64 por parte da sociedade, completa 60 anos – fato que confere uma carga simbólica e política à ação do Supremo. O entendimento do STF desta semana ocorreu porque a Corte decidiu retomar o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 6457), impetrada pelo PDT em 2020. Ela pede à Corte que esclareça o papel constitucional das Forças Armadas e limite seus poderes.

O nome de Ives Gandra Martins geralmente é evocado por defensores da ideia de que o artigo 142 daria margem para uma intervenção política legítima dos militares. A ideia motivou parte das pessoas que montaram acampamentos em frente a quartéis e bases militares em 2022 como forma de manifestação.

Ele disse à reportagem que “o artigo 142 jamais serviria para uma ruptura institucional”. O dispositivo só seria usado caso houvesse um conflito entre Legislativo e Judiciário acerca de um ponto específico, como, por exemplo, a constitucionalidade de um Projeto de Decreto Legislativo (PDL).

“A Constituição não pode ter palavras inúteis e o artigo 49 diz que cabe ao Legislativo zelar pela competência. Como ele poderá fazer isso se houver interferência do Judiciário? Se o Legislativo precisa zelar pela sua competência e o Judiciário invade, não será ele que irá zelar pela competência do outro poder”, disse o jurista.

Por conta disso, para Martins, o artigo 142 seria uma solução para o dilema por dizer que cabe às Forças Armadas a garantia dos poderes constitucionais. “Se houver um conflito entre os dois, para um ponto de conflito específico, é que as Forças Armadas poderiam dizer a quem cabe a questão”, argumentou o jurista.

Ives diz que não foi consultado pelo governo Bolsonaro

Citado pela Polícia Federal como suposto fundamentador jurídico para a tese de um golpe de Estado, segundo as investigações da operação Tempus Veritatis, Ives Gandra Martins nega que tenha sido consultado pelo governo Bolsonaro acerca de uma ruptura institucional, nem sobre sua interpretação do artigo 142.

“Nunca ninguém me pediu no governo para dar minha interpretação. Eles usavam minha interpretação e não me consultavam porque sabiam da minha posição. Desde agosto de 2022 eu vinha dizendo que a possibilidade de golpe no Brasil era de zero multiplicado por zero”, afirmou o jurista.

Martins também disse que seu entendimento sobre o dispositivo já seria conhecido no meio jurídico desde 1997, data em que publicou os primeiros comentários sobre o artigo 142. “Todos os meus comentários jurídicos foram enviados aos ministros do STF da época. A editora Saraiva mandava todos os meus volumes”, afirmou.

Ele acrescentou: “Eu dei minhas aulas na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME) com essa interpretação (sobre o artigo 142). Em novembro de 2022, eu publiquei um artigo no Conjur [site voltado à área jurídica] dizendo que não havia nenhuma possibilidade do 142 ser usado para qualquer golpe. Outro dia fiz uma palestra e o [ex-presidente] Michel Temer estava lá. Ele me disse: sua interpretação foi completamente distorcida.”

A rtigo 142 da Constituição estabelece papel das Forças Armadas

O artigo em questão normatiza a atuação do Exército, Marinha e Aeronáutica, definindo as três corporações como Forças Armadas. Além disso, o texto constitucional estabelece a quem elas são subordinadas e quais são suas funções.

“As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”, diz a Constituição Federal.

Interpretando o artigo, o advogado Felipe da Costa, do escritório Wilton Gomes Advogados explica que a norma não dá às Forças Armadas o status de um poder moderador, mas destaca a posição “subalterna” em relação aos demais poderes.

“O propósito da norma é, além de deixar clara a posição subalterna dos militares em relação aos Três Poderes constitucionalmente estabelecidos, impor-lhes o dever de, somente sob ordem de algum destes, atuar na defesa da ordem e do Estado Democrático de Direito, não significando, portanto, que detenham legitimidade para agir de ofício”, disse o jurista.

Ele também afirmou que “eventual intervenção militar, tal qual defendida por uma parcela da população, configuraria, na prática, verdadeira subversão das atribuições constitucionalmente estabelecidas às Forças Armadas”.

Intervenção militar foi vista como medida para controlar abusos do STF

A interpretação do uso do artigo 142 como meio legal das Forças Armadas intervirem na política ganhou força em 2020. Uma grande parcela da população começou a repudiar a grande disfuncionalidade e exacerbação de poderes do STF, que resultou em inquéritos como o das Fake News e dos Atos Antidemocráticos.

Segundo analistas ouvidos em reportagens da Gazeta do Povo, os inquéritos seriam disfuncionais por não seguirem o ordenamento jurídico, colocando por exemplo a mesma pessoa como vítima e juiz.

Outro fato que contribuiu para o aumento da insatisfação com o STF foi a prisão do então deputado Daniel Silveira (PTB-RJ), em 2021. Na época, o parlamentar foi preso em flagrante por críticas aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). De acordo com o artigo 53 da Constituição, parlamentares “não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável”.

Críticos do STF passaram a clamar por um Poder Moderador por acreditar que uma ruptura já havia sido promovida pelo Supremo. O STF vem afirmando que suas ações ocorrem em nome da democracia.

Até o momento, STF age em bloco para rejeitar tese do Poder Moderador

O julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade sobre o artigo 142 da Constituição está ocorrendo de forma virtual e deve acabar só na semana que vem, mas já não é mais possível reverter o resultado. Isso porque seis ministros já votaram contra a tese e os outros cinco, mesmo que fossem favoráveis, não atingiriam maioria.

O ministro Flávio Dino decidiu votar no dia 31 de março, data da efeméride de 60 anos do golpe de 64. O ministro Gilmar Mendes disse que a decisão está “reafirmando o que deveria ser óbvio”, segundo a estatal de comunicação Agência Brasil.

O relator do caso, Luiz Fux, disse em seu voto que: “a missão institucional das Forças Armadas na defesa da pátria, na garantia dos poderes constitucionais e na garantia da lei e da ordem não acomoda o exercício de poder moderador entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário”.

Lei de Segurança Nacional já foi usada para julgar que pediu intervenção militar

Apesar do julgamento do STF tratar apenas de aspectos constitucionais do artigo 142, a prática de pedir intervenção militar já foi interpretada como crime dentro da nova Lei de Segurança Nacional. O texto sancionado por Bolsonaro em 2021, em seu artigo 359-L, estipula penas para quem “tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito”.

O dispositivo foi utilizado nos julgamentos dos presos do 8 de janeiro de 2023, data em que as sedes dos Três Poderes, em Brasília, foram invadidas e depredadas. A Corte também votou para condenar os acusados de golpe de Estado por dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado. As penas variam entre 14 e 17 anos de prisão.

Para o advogado criminalista, Adriano Soares da Costa, os inquéritos conduzidos pelo Supremo e os julgamentos dos manifestantes do 8 de janeiro indicam que há possibilidade de uma extensão da Lei de Segurança Nacional aos intervencionistas.

“Desde a publicação da Lei 14.197/21, o STF vem fazendo investigações em um inquérito contra atos antidemocráticos, com uma série de medidas contra investigados, inclusive aqueles que estariam em acampamentos em frente a prédios do Exército. Na prática, há hoje um temor de uma interpretação que compreenda como tentativa de abolir o Estado Democrático de Direito mediante grave ameaça a simples manifestação pública de pedir intervenção militar contra os Poderes constituídos”, disse o advogado.

Ele também destacou que, embora as manifestações políticas estejam fora do artigo 359, “ainda assim há riscos para manifestantes que defendam a intervenção militar de serem enquadrados nesse crime, não estando acobertados pela liberdade de expressão, como ocorre em países da democracia ocidental.”

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