Durante o período de expansão do cristianismo no mundo não-judeu, a pujante Atenas continuava a ser o palco das novas ideias para todo o mundo antigo; enquanto berço da filosofia que subjazeria o pensamento formador da civilização ocidental – assim como Roma fora o berço do direito –, todo jovem romano ansiava pela possibilidade de beber das águas do conhecimento que jorravam diretamente das fontes atenienses. As novas ideias eram postas à prova em discussões públicas ocorridas no mercado da cidade, cuja exposição ocorria entremeada aos clamores dos homens que ofereciam sua produção aos potenciais compradores. Apesar de Atenas já não ser tão pujante militarmente e o apogeu filosófico da cidade ter acontecido havia alguns séculos, ainda assim, aquela cidade tinha como seu palco principal o areópago, onde se reunia o tribunal para julgar as demandas diárias.
A colina dedicada ao deus Áres (ou Marte, deus romano da guerra), anteriormente servia para os julgamentos criminais, realizados pelos anciãos da cidade; com o passar do tempo, outras demandas administrativas atenienses passaram a ocupar a pauta do tribunal e, por conseguinte, tornou-se um campo de batalha entre as ideias filosóficas que surgiam. Tão logo uma nova especulação filosófica surgia – mesmo exposta em meio aos ruídos do mercado de Agorá –, tendo arrebatado a atenção dos seus ouvintes, instados como estavam pelos pormenores daquela novidade, pediam do seu expositor pormenores acerca dos verdadeiros sentimentos do arauto em relação às ideias que defendia publicamente. Dessa maneira o arauto era direcionado imediatamente ao tribuno, no Areópago, localizado imediatamente atrás do Agorá, distante o suficiente para que a voz distinta do pregador da nova doutrina pudesse ser compreendida clara e atentamente por toda a plateia, que assentava-se naqueles bancos de pedra cravados na encosta da colina; aquele novo ambiente permitia ao expositor ser feito entender por todos, sendo beneficiado pelos cento e quinze metros de uma verdadeira “concha acústica”, que era aquela estrutura.
Quando um homem, cidadão romano, natural da cidade de Tarso, de descendência judaica, da tribo de Benjamin, adentrou àquela cidade, ficou admirado com a religiosidade de Atenas, inundada de altares dedicados às mais distintas divindades. A busca pelos favores divinos parece ser uma das explicações para tamanha devoção ateniense, de maneira que em meio aos muitos santuários e altares, um altar em especial saltou-lhe aos olhos; era um altar dedicado não a uma divindade que pudesse ser honrada nominalmente, mas um, cuja inscrição dizia somente: “Ἀγνώστῳ θεῷ” (“AO DEUS DECONHECIDO”). Esta Divindade, honrada por todos, sem, contudo, ser pessoalmente conhecido pelos concidadãos, era incomum, mesmo para uma cidade tão “supersticiosa”. Para aquele homem, crescido em meio ao monoteísmo judeu, aos pés de Gamaliel que era ancião e membro do sinédrio, toda aquela devoção era verdadeiramente espantosa. O espírito religioso da cidade de Atenas foi testemunhado em toda a antiguidade, ao ponto mesmo de haver quem dissesse ser mais fácil encontrar um deus, nos termos da cidade, do que mesmo um homem ateniense.
Adentrava, porém, aos limites da cidade aquele antigo perseguidor da seita do Caminho, que agora caminhava pelas mesmas Veredas que outrora escondia – não entrando, nem deixando outros entrar –; ele mesmo, Paulo, após sua profunda experiência religiosa, era uma das principais vozes e um dos grandes entusiastas daquela nova doutrina, sendo ele um dos grandes responsáveis pela sua difusão, primeiramente na sinagoga dos judeus, depois no meio dos gentios (não-judeus). Enquanto esperava pela chegada de outros companheiros de viagem que haviam permanecido na cidade de Bereia para que a continuação da jornada acontecesse, disputava na sinagoga com seus patrícios judeus e na praça com os outros arautos gregos. A substância da nova doutrina estava sendo provada em duas frentes de batalha, embora não concomitantemente: a Lei de Moisés que servia de tutor para conduzir os judeus para a nova doutrina messiânica, de um lado; e a filosofia, também considerada útil como tutora a conduzir os gentios para a mesma doutrina redentora, por outro. Noutra oportunidade, talvez falemos sobre a defesa da doutrina por meio da Lei de Moisés; limito-me, por hora, a falar sobre a religiosidade ateniense, em especial, sobre aquele altar peculiar encontrado pelo arauto “ambulante”, cuja inscrição acima do altar permitia-lhe expor sua doutrina diante dos supersticiosos, epicureus e estoicos atenienses. O jardim materialista de Epicuro e o pórtico determinista de Zeno estavam diante do jardim do Getsêmani e da cruz de Cristo, em quem converge o natural e o sobrenatural, sendo a ressurreição sua prova autoritária cabal, doutrina inadmissível para atomistas e motivo do mais profundo desprezo; além disso, a liberdade divina para invadir a história humana, tanto para a encarnação do Cristo – Verbo de Deus –, quanto para o julgamento do mundo, eram ambas doutrinas inadmissíveis para quem enxergava a história como um ciclo de acontecimentos repetidos de um mundo que era tão somente desprezado pelas divindades.
O deísmo epicurista e o panteísmo estoico eram desafiados em seus próprios domínios pelo teísmo de um “tagarela” e anunciador de “deuses estranhos”. O fato era que a cosmovisão estava no centro do imbróglio; visões de mundo distintas e diametralmente opostas entre si, chocavam-se em pleno mercado de Atenas apenas esperando ganhar novos capítulos no Areópago. A singularidade do evento acontecido no Areópago, quando a presença do proclamador da doutrina cristã na colina de Marte demonstrou aos filósofos sua ignorância em relação à verdade e aos religiosos atenienses, seu desconhecimento quanto à Divindade – não importando quantos altares estavam erigidos em louvor aos deuses, até mesmo os “Desconhecidos” – prestou testemunho da frivolidade de todos os esforços daqueles homens; um Deus Pessoal, cujo universo testifica-lhe os atributos não sendo ele próprio o Criador, era proclamado pelas criaturas que revelavam a verdade da Sua existência.
As mais elevadas virtudes da Sophia grega e todas as escolas éticas de então, nada mais eram que uma tentativa ínfima de, “tateando”, encontrar o “Deus Desconhecido”, cujo altar inominável denunciava a ignorância ateniense, pela sua incapacidade de pronunciar-lhe sequer o Nome. Em meio às elucubrações filosóficas e dentre todas as coisas que até então conheciam, estavam ignorantes acerca do que era indispensável conhecer. De todas as divindades com privilégios a altares, festas e devoções, o Deus Desconhecido não habitava em templos feitos pelas mãos do homem, nem pelos homens necessitava ser servido. Se todos deviam sua existência aos seus pais, que deviam-na aos pais deles e assim continuamente, temos que os seres contingentes deviam sua própria existência ao Ser necessário, de quem derivou imediatamente a própria vida, pois “de um só sangue fez todas as gerações dos homens”; aqueles que tinham existência, deviam-na Àquele que é pura-existência, ou, como Ele mesmo disse a Moisés: “EU SOU”. O movente do universo é imóvel. Deus é ato de existência e é impossível a Deus não existir, mas “Disse o néscio no seu coração: Não há Deus” (Salmos 53.1). Tudo quanto existe, necessita de Deus para existir, pois “todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez” (João 1.3); “porque nele foram criadas todas as coisas que há nos céus e na terra, visíveis e invisíveis, sejam tronos, sejam dominações, sejam principados, sejam potestades. Tudo foi criado por ele e para ele. E ele é antes de todas as coisas, e todas as coisas subsistem por ele” (Colossenses 1.16,17). A existência relativa dos homens necessita da existência absoluta de Deus, “Porque nele vivemos, e nos movemos, e existimos”.
Aquela doutrina lhes era confusa, mas poderosa; desde a última vez que o homem esteve no Jardim – não o de Epicuro –, entenebreceu-se o propósito do conhecimento; a doutrina platônica da eternidade da matéria era confrontada pela afirmação: “O Deus que fez o mundo e tudo que nele há, sendo Senhor do céu e da terra, não habita em templos feitos por mãos de homens”. Como é impossível a Deus não existir, logo é impossível a Deus mudar; pois o próprio Deus disse: “Porque eu, o SENHOR, não mudo” (Malaquias 3.6); se Ele mudasse, então não existiria do modo como é hoje, e, deixando de existir como é, não teria o atributo da Pura Existência e se não é Pura existência, não existe de si mesmo, mas por contingência; mas por Deus ser Pura Existência e a Pura Existência ser aquilo que é, então, Deus é Puro Ato e não há em Deus potencialidade (isto é, ‘capacidade’) para não-existência, nem a possibilidade de mudança; a sabedoria grega nada era, ante o fato de que “Toda a dádiva e todo o dom perfeito vem do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não há mudança, nem sombra de variação” (Tiago 1.17). O sentido da existência dos homens consistia em que eles “buscassem ao Senhor, se porventura, tateando, o pudessem achar”. Por fim, à luz do fato de nossa própria existência, conclui-se, por testemunho, que “não havemos de cuidar que a Divindade seja semelhante ao ouro, à prata, ou à pedra esculpida por artifício e imaginação dos homens”.
À luz do grande drama da luta cósmica entre o bem e o mal, devemos encarar os Atos da Redenção como sinais de Graça Divina, como São Paulo apóstolo escrevera: “Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus. Não vem das obras, para que ninguém se glorie; porque somos feitura sua, criados em Cristo Jesus para as boas obras, as quais Deus preparou para que andássemos nelas” (Efésios 2.8-10). Ora, o cristianismo não consiste em mera expressão de uma experiência religiosa; a religião cristã consiste no assentimento de determinados eventos históricos que tanto fundamentam quanto moldam a própria mensagem cristã, que por sua vez, sendo adequadamente assentida, leva à verdadeira experiência religiosa – a mesma pela qual passara nosso personagem São Paulo. Os eventos redentores servem de Modelo para todas as gerações de cristãos, por cuja razão toda a verdadeira experiência religiosa está fundamentada nos fenômenos históricos relacionados à origem do próprio cristianismo; e por serem eles eventos históricos, são tão verificáveis quanto qualquer outro evento histórico, portanto, a verdade cristã apoia-se tanto verificabilidade dos eventos redentores quanto nas verdades metafísicas deles derivadas.
Enquanto Jesus Cristo esteve neste mundo, houve o que podemos chamar de “proto-cristianismo”, um “cristianismo em estágio preliminar. O nome se originou após a morte de Jesus, e o próprio movimento era algo novo”[1]; era impossível que antes do fim do ministério terreno de Jesus houvesse algo diferente de uma mensagem incipiente e introdutória que apontava para os eventos futuros da Morte, Ressurreição e Ascensão de Cristo. Por causa dos eventos que fundamentam a mensagem cristã, insiste-se que o cristianismo não é um estilo de vida. A mensagem cristã consiste em eventos históricos que devem ser fielmente pregados e aceitos por todo aquele que desejar ser participante das bênçãos da Redenção, outro nome para a verdadeira experiência religiosa no sentido cristão.
John Gresham Machen (1881-1935), em seu livro “Cristianismo e Liberalismo”, afirmou que
“[…] É perfeitamente aceitável que os fundadores do movimento cristão não tivessem o direito de legislar pelas gerações seguintes, mas eles tiveram o direito de legislar por todas as gerações que escolherem carregar o nome “cristão”. É aceitável que o cristianismo possa ser abandonado hoje em dia e substituído por outra religião. Mas, sob todos os aspectos, a definição do que é Cristianismo só pode ser determinada por um exame de suas origens”. [2]
Não podemos determinar nem ressignificar o cristianismo sem cairmos no erro de mutilarmos e corrompermos sua Mensagem; o máximo que podemos fazer é aceitar o relato da primeira geração de seguidores de Jesus Cristo e nos unirmos a eles nesta mesma fé, seguindo o modelo que eles mesmos nos deixaram: “Conserva o modelo das sãs palavras que de mim tens ouvido, na fé e no amor que há em Cristo Jesus” (1 Timóteo 1.13). Ser cristão é sustentar o modelo deixado e não criar um cristianismo à imagem e semelhança de cada geração.
Como afirmamos no artigo “A Irrelevância dos Irreverentes”, o cristianismo é uma religião da Redenção; durante o ministério terreno do Mestre não há como afirmar que houve um “movimento cristão” antes que acontecessem os eventos que consistem na própria Mensagem cristã; apenas depois da Morte, Ressurreição e Ascensão de Cristo é que a Mensagem do evangelho da redenção se tornou conhecida.
Notas
[1] MACHEN, John Gresham. Cristianismo e Liberalismo. São Paulo: Shedd Publicações, 2012. p. 24.
[2] Ibid. p. 23,24.
Ícaro Alencar. Escreve no Diário do Acre às terças-feiras na coluna Diário Teológico. É formado em Inglês pela Universidade Federal do Acre (Ufac), cursando Teologia no Seminário Teológico Batista Nacional. É tradutor, revisor e editor de livros da Editora Batista da Promessa e Co-pastor da Primeira Igreja Batista da Promessa.