A fome de arrecadação e a armadilha da “justiça social” tributária

A saúde financeira do Estado brasileiro, paradoxalmente, parece estar em constante estado de inanição fiscal. A despeito de uma arrecadação que ultrapassou a marca de R$ 3 trilhões somente nos primeiros quatro meses de 2025, a “fome” do fisco por novas receitas demonstra ser insaciável.

Desde a instauração do chamado “arcabouço fiscal” –que, na prática, substituiu o teto de gastos públicos – o Governo Federal obteve um salvo-conduto para expandir suas despesas. O novo regime fiscal exige que, para cada real de gasto acima de um limite, uma proporção precisa vir de arrecadação. A equação é, portanto, alarmantemente simples: para gastar mais, é preciso, imperativamente, arrecadar mais.

É neste contexto de voracidade fiscal, onde a despesa é limitada pela receita e não pela eficiência, que observamos o avanço de reformas estruturais com o único propósito de engordar o caixa do Tesouro.

Neste cenário de necessidade arrecadatória, a já aprovada reforma tributária do consumo, com vigência prevista para 2026, representa um choque negativo iminente. Ao focar no modelo de tributação sobre consumo (tributos indiretos como ICMS, ISS, PIS/COFINS e IPI), que já compõe cerca de 44% da carga tributária nacional, a reforma onera a população de maneira indiscriminada.

Isso ocorre porque o tributo indireto é, por natureza, regressivo, ferindo o basilar princípio da capacidade contributiva. Ele ignora a renda e o patrimônio, sendo integralmente embutido no preço final de produtos e serviços. O empresário é apenas um fiel depositário; quem, de fato, paga é o consumidor, seja ele de baixa ou alta renda.

Embora a simplificação – pela substituição de cinco tributos por dois e o advento do sistema não-cumulativo pleno – seja um ganho inquestionável no longo prazo (até 2033), todos os estudos técnicos sérios sinalizam para uma elevação considerável da carga efetiva, especialmente nos vitais setores de serviços, transportes e agronegócio, que hoje gozam de regimes especiais ou alíquotas mais favoráveis. A simplificação, nesse caso, virá acompanhada de um aumento de custos generalizado.

Contudo, o Governo parece ter realizado um movimento político e estratégico de rara habilidade para desviar o foco da alta iminente na tributação do consumo. O Congresso acaba de aprovar o Projeto de Lei n. 1.087/25, promovendo a tão aguardada e necessária atualização da tabela do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF). A medida, corretamente celebrada, estabelece a isenção do IR para quem recebe até R$ 5 mil por mês, uma medida crucial para corrigir uma defasagem histórica. Conforme apurado, a atualização da tabela tem o potencial de beneficiar diretamente mais de 16 milhões de brasileiros. O custo dessa isenção, estimado em R$ 25,8 bilhões apenas em 2026, precisava, no entanto, de compensação imediata.

É aqui que a retórica da “justiça social” se materializa em legislação punitiva. Para compensar a renúncia fiscal, a proposta impõe um novo ônus ao setor produtivo e ao capital. O texto cria um patamar mínimo de Imposto de Renda de 10% sobre rendimentos mensais superiores a R$ 50 mil, atingindo rendimentos atualmente isentos (os dividendos).

Este piso de tributação, voltado para os chamados “super-ricos” – mas que curiosamente não atinge a alta casta do setor público e seus supersalários com benefícios isentos –, atingirá cerca de 141,4 mil contribuintes pessoas físicas, que, em sua grande maioria, são empresários, investidores e profissionais liberais. Este público hoje recolhe, em média, uma alíquota efetiva de 2,5% de IR sobre seus rendimentos totais (incluindo distribuição de lucros e dividendos). Adicionalmente, o PL 1087/25 determina a retenção de 10% na fonte sobre dividendos que ultrapassem o mesmo piso de R$ 50 mil por mês.

O que está sendo feito é uma transferência de ônus: aliviar a base da pirâmide via IRPF, um alívio popular e justo, mas esmagar a parte média e o topo da pirâmide com impostos sobre o capital e o lucro, criando, de quebra, uma narrativa que visa dividir a sociedade. O Governo parece tentar incitar a opinião pública contra o empreendedor, o acusando de pagar pouco, ao mesmo tempo que ignora a carga tributária própria das empresas.

Não custa lembrar: este mesmo empresariado já suporta uma carga tributária média de 36% em nível corporativo – a quarta mais alta do mundo, segundo estudos – somada a um custo de compliance que consome mais de 1.500 horas de operação anualmente. A medida, que superficialmente parece tirar dos “ricos” para beneficiar os “pobres”, na verdade, aperta um setor que já opera no limite, sabotando o motor da economia.

A consequência de tamanha manobra é que, no final do dia, todos perderão: o pobre, o rico e o Brasil.

Com a certeza do aumento de arrecadação via reforma do consumo (que virá com preços mais altos) e a penalização do capital via IRPF e dividendos, o Governo terá garantido o salvo-conduto para continuar gastando sem freios, e ganhará a simpatia do cidadão que compra o discurso de classes. Mas sem a indispensável redução do gasto público e a melhoria da eficiência da máquina estatal, o ciclo se perpetuará. A máquina pública continuará ineficiente e cara. O consumo se tornará mais oneroso para a população. Os empreendedores sofrerão uma asfixia fiscal ainda maior, o que inibe investimento, geração de empregos e, crucialmente, inovação.

O Brasil sofrerá, refém da eterna e insaciável fome de arrecadação do Estado. A verdadeira justiça tributária só será alcançada quando o debate sair do campo da “divisão de renda” e entrar no campo da eficiência da despesa. Enquanto isso não ocorrer, a sociedade continuará pagando o preço de um Estado que gasta muito e gasta mal.

Gilliard Nobre Rocha – Advogado tributarista. Mestre em Direito.

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