A suposta declaração do Chanceler alemão, Friedrich Merz, sobre o alívio de sua comitiva ao deixar Belém, não é apenas uma gafe diplomática; é um tapa na face da dignidade amazônica. É a manifestação crua de um sintoma, a revelação de um olhar estrangeiro que, ao sentir repulsa pela desordem urbana, falha em reconhecer sua própria e profunda responsabilidade na criação dessa realidade. Essa fala, carregada de um eurocentrismo insensível, expõe a brutal injustiça por trás das dificuldades que tanto o ofenderam e nos obriga a confrontar o paradoxo agonizante que define a Amazônia brasileira.
As cidades amazônicas, como Belém e Rio Branco, são o retrato gritante de um desenvolvimento impedido, um grito silencioso de milhões. A imagem de palafitas precárias, esgoto a céu aberto e bairros sem a mínima infraestrutura básica não é acidental, mas a cicatriz de um abandono forçado. Ela contrasta brutalmente com a exuberância da floresta ao redor, criando uma dissonância que dilacera a alma de quem mora ali. Os números não mentem e traduzem o abandono em dados concretos de sofrimento. Em Belém, a grande maioria da população não tem acesso a tratamento de esgoto, e mais da metade dos moradores de áreas de várzea enfrenta inundações e a ausência de serviços essenciais, vivendo em condições subumanas. O cenário de 2022 em Rio Branco era igualmente desolador: apenas metade da população tinha acesso à água potável, a coleta de esgoto mal alcançava 20% e, de forma alarmante e vergonhosa, menos de 1% do esgoto era efetivamente tratado. O lixo acumulado nas ruas, a desorganização urbana que causa a “repulsa” europeia, não são frutos de um desleixo inato, mas as consequências diretas de um sistema sufocado, impedido de evoluir. A questão fundamental não é por que a Amazônia é “feia” aos olhos de quem vê de longe, mas porque a região que abriga a maior biodiversidade do planeta não consegue oferecer dignidade básica, infraestrutura e um futuro promissor aos seus próprios habitantes.
A resposta reside em uma cruel ironia, uma farsa que o mundo se recusa a reconhecer: a mesma legislação ambiental que o mundo aplaude e exige, por proteger a floresta, atua como um freio de mão eterno para o desenvolvimento e a dignidade de quem nela vive. As rigorosas leis de proteção ambiental, vendidas como essenciais para o equilíbrio climático global e a consciência ecológica, transformam-se em algemas invisíveis, mas poderosas, para os estados amazônicos. A construção de infraestrutura vital, como estradas para escoar a produção, integrar comunidades isoladas e dar acesso a serviços básicos, torna-se um labirinto burocrático de licenças e embargos que inviabiliza projetos por décadas. A expansão urbana planejada e a construção de moradias sociais dignas, que poderiam erradicar as favelas em áreas de risco e oferecer um teto seguro, esbarram em proibições draconianas, empurrando a população para o crescimento desordenado e a favelização sem controle. Iniciativas econômicas que poderiam gerar emprego e renda – seja na agricultura de baixo impacto, na mineração controlada com responsabilidade social, ou no uso sustentável e inteligente de recursos florestais – são sistematicamente sufocadas por uma ótica de restrição máxima, sem alternativas viáveis ou investimentos proporcionais. A Amazônia, essa imensa e riquíssima porção do Brasil, arca com um ônus monumental, um sacrifício diário, para que o resto do país e do mundo desfrutem de estabilidade climática, ar puro e uma biodiversidade protegida. A floresta permanece em pé, sim, mas às custas de uma população mantida na invisibilidade e privada de oportunidades que são direitos fundamentais em qualquer outro lugar do planeta.
A “repulsa” do Chanceler, portanto, é o reflexo direto e inevitável das amarras que seu próprio mundo impõe à Amazônia. A precariedade de uma cidade como Belém, escancarada durante a, péssima, organização de um evento global como a COP30, não é uma falha local inerente, mas a ferida aberta e purulenta de um desenvolvimento negado, vilipendiado, em nome de um bem global que não retorna àqueles que mais contribuem. A solução, para a Amazônia, não virá de doações pontuais, frequentemente mal direcionadas e focadas apenas na “floresta” – como se esta fosse uma entidade separada de sua gente, de suas dores e aspirações. A Amazônia não precisa de caridade; ela grita por justiça, por equidade. É imperativo, é uma obrigação moral, que líderes como Merz e a comunidade internacional compreendam que o Norte do Brasil não pode, e não deve, continuar a carregar sozinho o peso da sustentabilidade global. É preciso construir um novo pacto, um compromisso verdadeiro, que permita o desenvolvimento urbano digno, que liberte o potencial econômico da região dentro de um modelo de economia inclusiva, com investimentos maciços em infraestrutura e na qualidade de vida das pessoas.
Somente quando for oferecida à Amazônia a chance real de suas cidades se modernizarem, de sua gente prosperar com dignidade e autonomia, de suas favelas se transformarem em bairros planejados, o olhar estrangeiro poderá finalmente evoluir da repulsa para a admiração e o respeito, reconhecendo o valor inestimável não apenas da floresta em sua imensidão, mas também de seus verdadeiros guardiões: os povos que nela vivem e por ela sofrem.
*Roberto Duarte, deputado federal pelo Republicanos do Acre.





