“As revoluções amazônicas raramente são feitas por ideais — são, antes, movimentos de reposição do mando.”
(Plácido de Castro)
O Acre nasce de uma revolta que a história oficial romantizou. Fala-se em bravura, libertação, pátria e independência, mas raramente se diz que o herói tinha a face de um patrão.
O jornalista e aventureiro Luis Gálvez Rodríguez de Arias, figura tão fascinante quanto ambígua, não fundou uma República, fundou um teatro político. Entre jantares e amantes, entre canhões e decretos improvisados, Gálvez encenou, com o patrocínio discreto do governador do Amazonas, a primeira experiência de poder autônomo no Acre.
Os relatos orais, deixados por nossos antepassados e tantos outros que o tempo não apagou, mostram um homem que misturava a diplomacia à boemia, o ideal à embriaguez. Seu governo era, como o seringal, um espaço de mando pessoal, onde os decretos valiam tanto quanto a vontade do chefe, e onde as aparências de civilização encobriam o velho instinto de dominação.
Quando Gálvez cai, em dezembro de 1899, substituído pelo seringalista cearense Antônio de Sousa Braga, o que muda é o sotaque do poder, não sua natureza.
O seringal não foi apenas uma unidade econômica, foi uma forma de organização social total. Ali se aprendeu a hierarquia, o favor, o silêncio, o débito, a obediência. E é essa cultura que migra para o Estado nascente.
Com o Tratado de Petrópolis (1903) e a anexação definitiva ao Brasil, o Acre deixa de ser “terra sem dono” para se tornar “terra de donos reconhecidos”. Os seringalistas, antigos coronéis do barracão, adaptam-se rapidamente ao novo regime. Onde antes havia o livro-caixa do aviamento, instala-se o orçamento público; onde havia a marca do patrão, ergue-se o brasão da República.
O poder muda de roupa, mas mantém a mesma voz. É nesse contexto que a figura de Plácido de Castro ganha densidade: sua visão de desenvolvimento, expressa nos relatórios de 1905–1906, procurava transformar o seringal em empresa racional, com escolas, estradas e lavouras. Mas seu ideal de progresso coexistia com a mesma estrutura autoritária e hierárquica. O Estado nasce, pois, com alma de patrão, e com vocação de tutela.
De 1904 até meados de 1940, o Acre é Território Federal, administrado por interventores enviados de fora. Mas esses governadores, militares e burocratas, rapidamente se enredam nas teias locais. Precisam dos seringalistas para garantir ordem, mantimentos e mão de obra. Os coronéis, por sua vez, precisam dos governadores para garantir crédito e legitimidade.
Esse arranjo, metade União, metade barracão, gera o que poderíamos chamar de MODELO SERINGAL DE GESTÃO PÚBLICA: um Estado que não se sustenta pelo imposto, mas pelo favor; que não se administra pela lei, mas pela relação pessoal; que distribui não direitos, mas concessões.
A política se torna uma extensão do seringal: o mesmo círculo de compadres, herdeiros, apadrinhados, e composições familiares governa a região, como se o tempo não tivesse passado.
Quando, nas décadas de 1940 e 1950, surge o Movimento Autonomista, parece que o Acre enfim rompe as correntes da tutela federal. Mas o que se conquista, de fato, é o direito de eleger os próprios tutores. A elite econômica decadente, arruinada pela queda da borracha, transfere-se para a política. Os antigos senhores da selva tornam-se senhores do orçamento.
Guiomard dos Santos, Oscar Passos e José Augusto de Araújo são figuras emblemáticas dessa transição. Guiomard, “pai da autonomia”, defendeu o progresso, mas o Estado que criou manteve a estrutura patrimonial. Oscar Passos e José Augusto tentaram reformar o modelo, mas o Estado, como um seringal velho, resiste ao corte das árvores de mando. A autonomia não rompe o modelo; ela o aperfeiçoa. O Acre torna-se Estado em 1962, mas nasce como herdeiro do seringal, não como sua negação.
O Estado do Acre é, sociologicamente, a continuidade institucional do seringal. As redes de dependência foram simplesmente reconfiguradas. O seringueiro virou eleitor; o aviador, político; o patrão, governador. O voto substituiu o caderno de dívidas, mas o resultado era o mesmo: a manutenção da dependência. As “famílias políticas”, Maia, Melo, Cameli, Viana, Bestene, Kalume, entre outros poucos, são o novo ciclo do aviamento: uma economia moral baseada no favor, no compadrio e na reciprocidade interessada.
A cada geração, muda-se o discurso: antes, civilizar; depois, desenvolver; hoje, empreender. Mas o núcleo do poder permanece: o controle simbólico da esperança popular. O Acre continua sendo uma terra de promessas administradas.
A história oficial ainda repete que o Acre nasceu da bravura e do idealismo de seus libertadores. Mas talvez tenha nascido, também, da necessidade de perpetuar um tipo de mando que a República apenas reorganizou.
A Revolução Acreana foi, em certo sentido, a revolta dos patrões contra outros patrões. E o Estado que se ergueu sobre ela conserva, sob as bandeiras e os discursos, a alma antiga do barracão.
O “modelo seringal de gestão e política” é, portanto, mais que uma metáfora: é uma estrutura mental, uma herança invisível, um modo de governar e de obedecer. E compreender o Acre é compreender essa metamorfose, do látex ao orçamento, do capataz ao deputado, do barracão ao palácio.
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Escritor, professor, pesquisador e especialista em Gestão Pública, com mestrados em Sociologia, Ciência Política e Direito. Articulista político, Lauro Fontes escreve sobre história e política às segundas, quartas e sextas-feiras no Diário do Acre.
Imagem de capa: “O mapa da estrada I”, 1983. De Hélio Holanda Melo.



