‘Apagou os planos das nossas vidas’: como clima extremo forçou produtores gaúchos a abandonarem o campo

“Pai, onde é que estão as vacas?” – para o produtor rural Jonas Keisacamp essa é uma das perguntas mais difíceis de responder ao seu filho de 4 anos. “Isso é o que mais dói”, diz.

Jonas é um dos vários produtores que precisaram desistir da lavoura e recomeçar a vida do zero, depois das chuvas de maio no Rio Grande do Sul.

As tempestades começaram no dia 27 de abril e atingiram mais de 470 cidades, sobrecarregando as bacias de diversos rios, que transbordaram. Pelo menos 182 pessoas morreram.

Mas essa não foi a única vez que os agricultores entrevistados viram seus planos se desfazerem. Eles relatam que, desde 2019, já vinham produzindo menos por causa de secas.

Em janeiro de 2020, 28 municípios decretam emergência por causa da estiagem.

Em 2023, começaram as enchentes. Primeiro, em setembro, com a passagem do ciclone extratropical pelo estado. Depois, em novembro, causadas pelo excesso de chuva acumulado em todas as bacias hidrográficas do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina e do Sul do Paraná.

Estes eventos anteriores devastaram parte das áreas dos produtores. Então, o que foi destruído na tragédia de maio deste ano já era uma reconstrução.

Com financiamentos a pagar e sem ter de onde tirar dinheiro – uma vez que a fonte da renda foi levada pelas águas –, a população do campo não teve como arcar os custos de um novo plantio, de reconstruir as estruturas (de novo) ou de consertar os maquinários, por exemplo.

Para alguns, a única saída foi se mudar para a cidade, arranjar uma nova profissão e tentar recomeçar.

São criadores de animais que viraram mecânicos, como no caso de Jonas, ou pedreiros, como Jorge Hinning, de 53 anos, que não acredita ser possível um dia retornar para o campo.

“A gente se sente triste, porque a vida toda a gente se criou na lavoura. […] A gente tem que se adaptar mesmo não querendo. A gente tem que se adaptar de um jeito ou de outro. Fazer o que, né?”, afirma.

É o mesmo caso do Telmo Hendges, de 61 anos. Para sobreviver, ele precisou deixar os suínos que criava para trás. “A gente abandonou porque não tinha mais o que fazer. E daí salve-se quem puder”, relata.

De 971 porcos, apenas 105 sobreviveram. Hoje, Telmo trabalha em um posto de gasolina.

Conheça a seguir a história dos três produtores.

“Destruiu uma vida de trabalho”

Telmo e Clair Hendges — Foto: Arquivo Pessoal

A trajetória de Telmo com a lavoura já havia sido interrompida muito antes das chuvas de maio. Aos 20 anos de idade, ele precisou sair da roça.

Daquela vez, o motivo foi que a área que seu pai possuía era pequena, e não tinha como sustentar a família inteira.

Apenas em 2008, Telmo pôde realizar o sonho de voltar ao campo. Com uma lavoura de 11 hectares, no município de Arroio do Meio (RS), ele estava trabalhando com a criação de suínos e gado leiteiro.

Lá, as chuvas chegaram em 1° de maio e, pela primeira vez, as enchentes alcançaram a casa do pecuarista.

“A água entrou na casa, destruiu tudo, destruiu a propriedade toda. Na verdade, a nossa propriedade não ficou com um palmo de fora“, relata.

Telmo e sua esposa, Clair Inácia, de 60 anos, foram resgatados de barco pela defesa civil. “A gente colocou a vida em risco em cima do barco, em uma correnteza do rio, para tentar se salvar”.

Na ocasião, o produtor relata que o chiqueiro já estava submerso, com alguns animais se refugiando no telhado. Antes de fugir, Telmo ainda soltou os porcos, para dar uma chance de eles escaparem.

Quando a água abaixou, tudo estava destruído. Os bichos que sobreviveram foram recolhidos pela JBS, empresa a qual a produção de Telmo era integrada.

Telmo ainda chegou a receber cerca de R$ 200 mil do seguro; contudo, o valor foi muito inferior aos prejuízos, estimados em cerca de R$ 2,5 milhões. Além disso, após as chuvas de setembro, ele já havia investido R$ 300 mil em reparações.

“A gente teve que abandonar [a propriedade]. E não tem outra opção, a gente tem que tocar a vida, porque a gente precisa viver”, afirma.

Hoje, o pecuarista está trabalhando em um posto de gasolina e sua esposa virou diarista. Apesar de já ter idade para a aposentadoria rural, Clair teve o benefício negado.

Telmo não acredita na possibilidade de reconstruir seu sítio. “Vou fazer mais um empréstimo, alguma dívida em cima e vou viver com ela até os 80 anos? Não. Se eu viver até os 80, seria pagando dívida. Aí, sem condições”, explica.

O produtor também teme que, ainda que ele invista novamente na propriedade, novos desastres aconteçam.

“A enchente destruiu um sonho, uma vida de trabalho. […] A gente não teve só perda financeira, mas tem a perda moral, psicológica. Isso é muito triste”.

O chiqueiro da propriedade de Telmo Hendges, de 61 anos, ficou submerso por causa das chuvas — Foto: Arquivo pessoal

‘A gente tem que se adaptar mesmo não querendo’

Jorge Hinning — Foto: Arquivo Pessoal

Há 27 anos produzindo em Cruzeiro do Sul (RS), os problemas de Jorge começaram em 2019, todo ano perdendo um pouco das produções de soja e milho para a seca.

O produtor, que também criava gado, porco e galinhas para consumo próprio, viu seus prejuízos crescerem com as enchentes de setembro e novembro, mas foi em maio que ele se sentiu obrigado a desistir. “Perdemos o maquinário, perdemos tudo o que nós tínhamos, na verdade”, conta.

Apesar de já ter enfrentado outras enchentes, a de maio pegou o agricultor de surpresa. Quando a água começou a entrar em casa e a eletricidade acabou, ele foi, com a esposa e a enteada, para o lugar mais alto que conhecia: a colheitadeira.

“São uns 3 metros de altura. E fomos para lá, levamos água e comida. […] A água foi onde nós nunca imaginávamos, e atacou a colheitadeira. Aí tive que ir nadando até um silo que eu tenho para pegar uma corda, para minha mulher poder passar. Aí, arranquei o telhado do galpão por baixo e subi para cima do telhado”, lembra.

Depois de passar uma noite no telhado, com a chuva ainda caindo, a família foi resgatada por um helicóptero e levada para o município de Lageado.

“A lavoura foi perda total de novo, toda a soja, milho, foi 100% de perda. Perdemos todo o gado que a gente tinha. Não teve sobra de nada, perdemos móveis, tudo. Ficamos só com a roupa do corpo, dá para dizer. E as máquinas ficaram todas na água. Foi tudo perdido”, relata.

Como não foi a primeira vez que o produtor sofreu perdas, ele já tinha alguns financiamentos. Com as dívidas acumuladas, reconstruir não foi mais uma opção.

Hoje, a família tem uma casa alugada na área urbana, Jorge trabalha na construção civil, sua esposa se divide entre um trabalho matutino de babá e faxinas no período da tarde, enquanto a enteada, de 19 anos, trabalha em uma farmácia.

“Aqui a gente está sem dinheiro. E tem que vender o que sobrou para pagar as dívidas com o banco. Então, tivemos que optar por trabalhar [na cidade] para sobreviver. Porque não tenho mais condição de plantar. Como que eu vou plantar lavoura se eu não tenho dinheiro?”, diz.

Jorge está tentando vender a propriedade, mas afirma que ninguém tem interesse em comprar. “Ninguém quer vir pra esse lugar. Tá complicado, perdeu o valor”, afirma.

Jorge Hinning, de 53 anos, precisou abandonar a criação de animais depois que sua propriedade ficou submersa pelas chuvas — Foto: Arquivo pessoal

‘Pra que ficar sofrendo? Tá difícil’

Jonas Keisacamp — Foto: Arquivo pessoal

Jonas, de 37 anos, nasceu e se criou em meio à lavoura. Ele foi sucessor de seus pais e, seu sonho, era passar para seu filho a propriedade em Arroio do Meio (RS). Na fazenda, ele criava gado de leite e plantava milho para a silagem, até que as várias enchentes seguidas fizeram com que ele desistisse.

Ainda na de setembro, 6 vacas morreram. Na ocasião, ele as deixou em um pátio, para conseguirem escapar das águas. As que sobreviveram perderam peso e sofreram nos dias em que não foram ordenhadas.

“E elas gritavam de dor, daí eu tirava o leite na mão mesmo. Os amigos e vizinhos vinham e ajudavam. Parecia que elas queriam que tirasse [o leite]”, lembra.

Além de equipamentos e móveis em sua casa, Jonas também perdeu 180 toneladas de silagem.

Depois dessa chuva, o criador decidiu vender os animais, mas ainda insistiu com o plantio na lavoura. Em novembro, ele perdeu tudo novamente.

Em maio, Jonas já estava trabalhando em uma oficina mecânica de máquinas agrícolas, mas ainda lidava com animais para subsistência e tentava restaurar o solo para plantar novamente.

“Eu sei que fiz a coisa certa [ao vender os animais], porque a [enchente] de maio foi bem maior, a minha casa ficou quase de baixo de água”, diz.

Ainda hoje, os prejuízos da estrutura não permitiram que Jonas voltasse para casa e ele está morando com os sogros.

O agricultor estima que para recuperar os danos da propriedade e plantar novamente, o investimento teria de ser de cerca de R$ 400 mil.

“Mas aí, se der para plantar de novo, eu vou pegar de novo enchente. Para que ficar sofrendo? Tá difícil”, comenta.

Além disso, ele já possui financiamentos de maquinários que precisa terminar de pagar.

“Apagou os planos na nossa vida. Eu estava sempre investindo em maquinário. Eu estava pagando um consórcio em um trator novo com ar-condicionado. Meu guri sempre queria ir junto na roça, daí era quente. Se tivesse com ar-condicionado podia levar junto”.

Apesar de não acreditar ser possível um dia voltar a trabalhar com gado de leite, Jonas espera um dia recuperar o solo para plantar novamente na lavoura.

“Eu queria que o meu filho fosse o meu sucessor. Eu tinha planos, né? Agora não sei. Pelo menos, eu não vou desistir. Quero dar um exemplo para o meu filho, para a minha família, continuar trabalhando”, diz.

Jonas estava tentando recuperar o solo da sua propriedade de enchentes anteriores quando novas chuvas destruíram tudo — Foto: Arquivo pessoal

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