Diário Teólogico: A Bíblia enquanto documento pactual

A única saída para cultivarmos um cristianismo bíblico é conhecermos a verdade, praticarmos a verdade e amarmos a verdade e a beleza da verdade. Esta é a única maneira de conservarmos às próximas gerações, a pureza do cristianismo da mesma maneira como recebemos; o apóstolo Paulo assim ensinara a seu filho na fé, Timóteo: “conserva o modelo das sãs palavras que de mim tens ouvido, na fé e no amor que há em Cristo Jesus” (II Tim. 1:13). O cristianismo não pode ser ressignificado sem que sua mensagem seja amputada e maculada. Apenas à primeira geração cristã foi facultado definir o que é a doutrina no sentido cristão. 

Uma vez que as Escrituras são o documento pactual, nada se lhe acrescentará nem se extirpará em tempo algum. Graças à misericórdia divina em operar em favor da transmissão das Escrituras. Os eventos retentores de que falamos em nosso artigo anterior, geralmente são considerados matéria de segunda importância, ao passo que as banalidades do utilitarismo de ocasião, no meio cristão, ganham sentidos de urgência apocalíptica. Corretamente Paul Washer apontou:

“[…] O evangelho não é apenas uma mensagem introdutória ao Cristianismo — ele é a mensagem do Cristianismo e o crente faria bem em dar a sua vida na busca de conhecer a sua glória e torná-la conhecida.” (WASHER, Paul. O Poder do Evangelho e sua Mensagem. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2013. p.15)

Se um inquiridor almeja conhecer as bases do cristianismo, que recorra à história, pois a Mensagem cristã é a proclamação de eventos históricos, que, à luz da redenção, são a própria doutrina cristã. Exceto para os teólogos liberais.

Sob influência do liberalismo teológico, já há quem hoje separa o evangelho do testemunho das Escrituras – aquele livro repleto de camadas míticas e influências da filosofia grega que em tese tornou a religião cristã menos inclusiva. O mais inconsistente numa tal fala infeliz é o fato de que não saberíamos que o Evangelho é o poder de Deus para salvação de todo aquele que crê, sem o testemunho das Escrituras; além disso, a dissolução dos pecados pessoais para a impessoalidade da sociedade, é o oposto de uma redenção “social”, pois esta, sendo formada de indivíduos viciosamente pecadores, sempre terceirizarão a culpa da própria consciência. É terrível saber que um novo marcionismo jaz entre nós e que ainda tenha os púlpitos ao seu dispor. As Escrituras não são apenas o testemunho infalível em linguagem humana sobre quem é Cristo, qual o significado de sua obra redentora, enfim, a mensagem do evangelho. A bíblia, porém, também é um testamento pactual; se ela não é um documento de aliança, então não temos redenção, nem kenosis, nem paixão, nem morte, nem ressurreição, nem ascensão; e se Cristo não morreu, logo é vã a nossa pregação, e vã a nossa fé. É cada vez mais difícil defender uma bíblia inerrante disponível hoje em sua totalidade: agora a ortodoxia é a heresia. 

Em nome da diversidade e do ecumenismo, o cristianismo é amputado de seu fundamento histórico e remanejado para subjetividades modernas. Nisso, a própria vocação cristã, se perde e toda e qualquer autoridade dela derivada, fenece junto. Comentando acerca do teólogo liberal alemão Friedrich Schleiermacher, W. A. Hoffecker observou que, para o aquele teólogo

“Nenhuma autoridade externa, seja ela pelas Escrituras, Igreja ou declarações de um credo histórico, têm precedência sobre a experiência imediata dos crentes.” (HOFFECKER, W. A. Schleiermacher, Friederich Ernst, em: Enciclopédia histórico-teológico da igreja cristã. São Paulo, SP: Vida Nova, 1988. 3:357)

A ausência de autoridade objetiva sobre a vida cristã tem resultado em inúmeros prejuízos à causa do evangelho; a transformação da mente sendo substituída pela busca de novos sentimentos, fazem o sujeito ser autoridade sobre si mesmo, como de dentro de si emanasse a solução para o problema eterno de sua alma, quando na verdade é de dentro do homem que procede aquilo que lhe contamina. Além disso, a mera capacidade de mobilização das massas está em primeiro lugar à própria verdade; para Schleiermacher estar “participando na vida comunitária da igreja contemporânea [era] mais do que meramente crer na morte e ressurreição de Cristo na história”. (Ibid. 3:357) Amputada a mensagem de seu fundamento histórico, nada mais resta, senão subjetividades e uma vaguinha reservada no grupo dos transformadores sociais.

Observemos como a Escritura tem relação com o pacto e a própria redenção em si. Quando Deus fez um pacto com o povo judeu, lemos que “[…] Moisés […] tomou o sangue dos bezerros e dos bodes, com água, lã purpúrea e hissopo, e aspergiu tanto o mesmo livro, como todo o povo.” (Heb. 9:19) Ao aspergir o sangue do sacrifício tanto sobre o povo quanto sobre o livro, Moisés apontou para as duas partes do pacto: o povo e Deus, agora aliançadas através do sangue e tendo o documento pactual como garantia para ambas as partes do cumprimento cabal da aliança; tudo isso são figuras de Cristo e do novo pacto. Portanto, removidas as transgressões em Jacó, as Palavras de Deus hão de ser permanentes entre o povo pactual na terra (Is. 59.20-21). A Bíblia é o testamento de nossa redenção e a mesma é escudo para os que confiam em YHWH (Prov. 30.5). Mas os teólogos liberais insistem que há coisas mais excelentes.

Sem uma bíblia preservada, a mensagem do evangelho também não está preservada. Ora, uma das coisas mais esdrúxulas que existe, são aqueles que ensinam um Deus tão Soberano e Elevado na salvação dos homens, e tão apático e dependente dos homens iluminados da crítica textual,  na “restauração” do texto das Escrituras Sagradas, o documento pactual da redenção. São confusos quando apresentam-se como monergistas na soteriologia, mas teístas abertos na bibliologia. Não podemos “amenizar” minimamente a doutrina da preservação perfeita das Escrituras sem que isto interfira no pacto entre o povo e Deus, as duas partes do pacto (2Tim. 3.16-17). Se podemos questionar uma palavra do texto sagrado, o que nos impede de inquirir acerca do cânon e do próprio conceito de canonicidade? O pior de tudo isso é que os próprios cristãos “ortodoxos” estão assumindo, sem se darem conta, os pressupostos dos liberais: amputam a mensagem histórica do cristianismo e reduzem-na a um recorte mal-acabado da fé primitiva, como aqueles soldados de papel que recortávamos nos jornais. Assim, ocorre a instrumentalização das instituições cristãs para propósitos da revolução cultural, que visa destruir os fundamentos da civilização ocidental. 

O sacrifício de Cristo foi registrado em um testamento – ambos os elementos presentes na figura acima de Moisés -; o evangelista São Lucas registrou o que disse Jesus: “[…] Este cálice é o novo testamento no meu sangue, que é derramado por vós” (Luc. 22:20); Cristo comprou tanto seu povo, quanto deixou as Palavras para seu povo, por isso a existência do cálice da comunhão e da bíblia. Mas sabemos que os homens tendem a sobrepor coisas excelentes por banalidades e inferioridades. Isso aconteceu com as Escrituras e sua autoridade. A Crítica Textual restauracionista parte do pressuposto de que o texto do NT necessita ser recuperado. Isso por si só é um ataque claro à doutrina da preservação das Escrituras. Todo e qualquer cristão que ache correta a sua aplicação nos estudos em bibliologia e ache que a alta crítica e a baixa crítica são assim tão diferentes, diametralmente opostas, ainda não percebeu que a diferença entre uma e outra é apenas a quantidade de veneno administrado; infelizmente a entorpecida consciência de muitos cristãos em relação à sã doutrina ensinada pelo Senhor, o qual prometeu preservar o testamento do pacto em sua totalidade, questiona se não passa de um fantasma criado por seguidores que queriam incluir mitos aos relatos de Cristo. Ora, o simples fato de não haver sequer um teólogo liberal que defenda os Textos Tradicionais em hebraico e grego, demonstra com clareza admirável o quão séria é a questão por detrás das versões modernas da bíblia, e como é importante que firmemos os nossos pés sobre a certeza da Promessa de preservação das Escrituras, feita por Deus, ao invés de nos colocarmos como reféns de “eruditos” cujos pressupostos são viciados.

A autoridade das Escrituras se extrai, objetivamente, da inspiração das palavras canônicas, materializadoras da ideia intencional, também chamado de “theopneustos”. Mas ocorre que os eruditos cristãos estão tão entorpecido por dar sentimentos às palavras, ao invés de seu significado no mundo real, que entregam-se ao cabresto das subjetividades. Se as palavras são insuficientes para o fim de alcançar a ideia, então, qual outro recurso nós temos disponível, uma vez que eu não consigo refletir as imagens mentais que tenho, num telão para vocês verem? O meio comum – a Deus e aos homens – que foi usado por Deus (que é onisciente) para comunicar eficazmente a sua vontade quanto à redenção da humanidade, foi a linguagem humana. Se houver uma palavra, um jota ou um til, que não foi divinamente autorizado nas Escrituras, então você não terá uma autoridade objetiva sobre si mesmo; como podemos confiar nas palavras divinas se elas estão embaralhadas entre palavras humanas desautorizadas? Qual o valor da confissão de que os originais eram infalíveis, se não mais existem, como iremos conhecer esta redação? Se Deus podia preservá-la, Ele seria mal em não fazê-lo. Se Ele não podia preservá-la, então não é Onipotente. Se ela não é inerrante, é como outro qualquer livro, os liberais estão certos em não lhe darem atenção ou ceder aos seus apelos; mas foi esta a característica singular que Deus advogou à Sua Palavra: a inerrância.

Geralmente, os críticos de texto “ortodoxos” querem que acreditemos nas boas intenções em relação ao novo tipo de texto que defendem (Texto Crítico), e que todo o apelo que fazemos nada mais é do que presunção, ou algo desta natureza. Começo a trazer, porém, algumas citações que demonstram o que verdadeiramente acreditam estes modernos críticos textuais:

“Não só não temos os originais, como não temos as primeiras cópias dos originais. Não temos nem cópias das cópias dos originais ou cópias das cópias das cópias dos originais.” (Bart Ehrman, Misquoting Jesus: The Story Behind Who Changed the Bible and Why , New York, NY: Harper, 2005, p. 10)

“Não temos agora – em nenhum de nossos textos críticos gregos ou em qualquer tradução – exatamente o que os autores do Novo Testamento escreveram. Mesmo que o fizéssemos, não saberíamos.” (Dan Wallace in “Foreword,” Myths & Mistakes in New Testament Textual Criticism , Elijah Hixson & Peter Gurry, Downers Grove, IL: IVP Academic, 2019, p. xii)

“…Eu não acredito que Deus tenha qualquer obrigação de preservar cada detalhe da Escritura para nós, mesmo que ele tenha nos concedido um bom acesso ao texto do Novo Testamento.” (Dirk Jongkind, An Introduction to the Greek New Testament, Produzido em Tyndale House, Cambridge , Wheaton, IL: Crossway, p. 90)

“O que fica para trás são fragmentos, sobrevivências casuais do passado – estamos tentando montar um quebra-cabeça com apenas algumas peças.” (Peter Gurry, A New Approach to Textual Criticism: An Introduction to the Coherence Based Genealogical Method , Tommy Wasserman, Peter J. Gurry. Atlanta, GA: SBL Press, p. 112.)

“Textos bíblicos sobre a confiabilidade e preservação da palavra de Deus não têm nada a ver com crítica textual, pela simples razão de que os autores não tinham processos de cópia em mente, mas apenas o valor das verdades que transmitiam.” (Jan Krans, “ Why the Textus Receptus Cannot Be Accepted ” (Posted October 22, 2020).)

“Não tenho intenção de tentar provar que esta ou aquela variante textual é a palavra original de Deus. Gostaria de trabalhar como crítico de texto como se Deus não existisse, por assim dizer. Por outro lado, tenho uma fé pessoal que certamente afeta também minha erudição, e tento ser honesto sobre isso. Estou certo de que a crença ou descrença de outras pessoas afeta o que elas fazem. Prefiro não ser colocado em uma caixa de críticos de texto masculinos brancos privilegiados que apenas fingem ser eruditos de verdade.” (Tommy Wasserman, comment on blog post “ ‘First-Century Mark’ SBL Panel ,” (Posted November 25, 2019))

“Existem, de fato, lugares em que somos constrangidos por evidências esmagadoras a reconhecer a existência de erros textuais em todos os documentos existentes? A esta pergunta não hesitamos em responder afirmativamente… Pouco se ganha especulando sobre o ponto preciso em que tais corrupções ocorreram. Elas podem ter sido devidas ao escritor original, ou ao seu amanuense se ele escreveu por ditado , ou podem ser devidos a um dos primeiros transcritores.” (Brooke Foss Westcott e Fenton John Anthony Hort, The New Testament in the Original Greek, Introduction and Apêndice , New York, NY: Harper and Brothers, 1882, 279-281.)

Os primeiros cristãos viram com naturalidade a existência de escritos que se mostraram autoridade objetiva sobre a comunidade. Considerando a influência judaica no início da igreja, a ideia de livros sagrados dotados de autoridade e parte formal do pacto com Deus, ganha ares de naturalidade. A comunidade de fé se mostra como resultado dos escritos sagrados canônicos e não o oposto; tão logo a ausência apostólica se notabilizara, os escritos apostólicos ocupavam a posição de autoridade; isso ocorre porque a fé cristã está fundamentada na mensagem, e não em indivíduos. A mensagem apostólica era dotada da autoridade de Cristo e aonde a pessoa do apóstolo não chegou (no tempo e no espaço), os escritos canônicos chegaram como formalidade do pacto. O ofício apostólico de manter os ensinamentos de Jesus Cristo conservados transformou-se, posteriormente, na catolicidade da igreja, ou apenas a fide quæ creditur. O próprio sentido de ortodoxia deriva do Novo Testamento, o primeiro documento histórico ignorado solenemente pelos teólogos liberais. Este documento que molda a comunidade de fé ao anunciar o testemunho escrito da história da redenção, resulta em um estabelecimento de modelos internos à própria comunidade de fé que uniu-se a Deus. A autoridade das Escrituras está pressuposta; a própria comunidade reconhecia a autoridade do escrito pelo seu conteúdo. Assim, Deus constituiu maneiras que permitiram às comunidades de fé e às Escrituras serem ligadas uma a outra: pelo autor comum de ambas, a saber, o Paraclitus, o Espírito Santo; é ele quem batiza e insere o indivíduo no corpo de Cristo, ou seja, quem forma a comunidade da aliança (cf. I Cor. 12:12-13) e quem inspirou os hagiógrafos a escreverem as Escrituras, o documento pactual (cf. II Ped. 1:21).

Por Ícaro Alencar. Escreve no Diário do Acre às terças-feiras na coluna Diário Teológico. 
É formado em Inglês pela Universidade Federal do Acre (Ufac), cursando Teologia no Seminário Teológico Batista Nacional. É tradutor, revisor e editor de livros da Editora Batista da Promessa e Co-pastor da Primeira Igreja Batista da Promessa.

Tópicos:

PUBLICIDADE

Preencha abaixo e receba as notícias em primeira mão pelo seu e-mail

PUBLICIDADE

Nossa responsabilidade é muito grande! Cabe-nos concretizar os objetivos para os quais foi criado o jornal Diário do acre