Diário Teológico: A Bíblia reconstruída para a modernidade

Já temos falado algumas vezes acerca da busca sincera pela verdade; longe de esconder-se dos homens, a verdade é cognoscível e sua busca consiste na mais honrosa das jornadas empreendidas pelo homem; o fato é que, nas principais religiões do mundo, bem como em todas as iniciativas humanas em direção a esta verdade suprema e ao seu conhecimento, podemos encontrar peças de um mosaico cujas partes manifestam a imagem da verdade de Deus – partes estas que estão espalhadas e fragmentadas entre os homens e suas crenças, mas em meio às suas superstições. Isso significa que em nenhuma dessas crenças achamos a imagem exata desta verdade formando o mosaico, senão na religião cristã. Podemos afirmar que à parte do cristianismo, tudo quanto temos são peças soltas de um mosaico que se torna obscuro e cujos fragmentos, por serem apenas parte de uma estrutura maior e mais substancial, são incapazes de revelar plena e nitidamente a imagem, à parte do todo reunido e devidamente ordenado. 

Não deveríamos nos conter tão somente em alcançar um fragmento da verdade, pois tê-la parcialmente, é não tê-la absolutamente. No aspecto redentor, considerando que a doutrina, no sentido cristão, consiste no assentimento da mensagem do evangelho cuja substância consiste numa série de eventos histórico-redentores singulares, acontecidos no mundo antigo, registrados na Bíblia e passíveis de tornarem-se conhecidos a todo e qualquer indivíduo pelo simples fato de serem parte da história humana, cabendo ao inquiridor investigá-los para então participar de sua trama, na sua própria vida, e desfrutar dos benefícios advindos desta mensagem. Tais eventos redentores não ocorreram num vácuo histórico nem em um lapso temporal; foi dentro da linha do tempo da história humana que os acontecimentos formadores do cristianismo, sucederam, e, pela investigação histórica, estão disponíveis para o exame. Isso ocorre porque, como William Lane Craig corretamente observou: 

“[…] O cristianismo não é um conjunto de regras para a vida nem uma filosofia de religião; antes, está arraigado em fatos históricos […]. Ao mesmo tempo, isso torna o cristianismo singular, porque, ao contrário das outras religiões mundiais, temos meios de verificar sua veracidade pelas evidências históricas.” [1]

Considerando que o fundamento do cristianismo é histórico, concluímos que depende de fontes históricas documentais que atestem este relato testemunhal, por pelo menos dois motivos: para a preservação da mensagem cristã e para a investigação da veracidade da própria mensagem do cristianismo; e, é aqui que começam os problemas. Se considerarmos que o fundamento do cristianismo repousa na veracidade de determinados fatos históricos narrados, os quais, caso pudessem ser provados como fraudes fabricadas, levariam consequentemente à destruição de toda a mensagem cristã, concluiríamos que tudo o que restaria, seriam escombros e a névoa do engano; o próprio apóstolo São Paulo, quando examinou esta possibilidade, concluiu categoricamente: “Comamos e bebamos, que amanhã morreremos” (I Cor. 15:32); sem a fé no Cristo de Deus, tudo o que nos resta é o materialismo e a autoflagelação; se nada há, além do céu sobre nós e do universo material, tudo o que somos em nosso mais elevado nível, consiste basicamente em uma série de reações químicas, fisiológicas e psíquicas. 

O homem retratado pelos sabotadores pós-modernos é um mero animal obstinado, que vive macaqueando uma luta dura ante a realidade de um universo cruel e sem significado que não consegue aceitar; este homem está preso em um corpo que logo, logo, alimentará os vermes, tão logo se lhe chegue a hora da morte inescapável; a própria existência humana é rebaixada às mais superficiais frivolidades – motivo que explica porque as zilhões de “sexualidades”, o adultério, a legalização das drogas e a libertinagem generalizada são elevados ao patamar das mais elevadas virtudes do homo sapiens sapiens, ao passo que aquilo que não podemos não saber, continua sendo sufocado pelo politicamente correto. Por outro lado, toda essa áurea libertina e festiva, se desfaz pelo efeito colateral da pós-modernidade; se somos resultado da seleção natural evolutiva, é compreensível e até mesmo louvável que algumas alminhas mais “fracas” e menos evoluídas possam ter suas respectivas existências relativizadas, como as vidas intrauterinas, por exemplo. 

Um dos últimos redutos de equilíbrio nesta era, ainda é o cristianismo. Ocorre que não poucos são os cristãos colaboracionistas pós-modernos e proeminentes que estão dispostos a abrir concessões cada vez maiores para fazer parte do processo de secularização do cristianismo enquanto acreditam estar promovendo “a ciência, o conhecimento e o progresso”. Na tentativa de parecerem “neutros”, diante da opinião majoritária da academia, os “iluminados” lançam mão dos fatos por causa do que pressupõem ser “historicamente possível”; basicamente agem como um alfaiate que mutila o cliente para que este caiba na roupa, ao invés de adequar a roupa ao cliente. Dentre as muitas impossibilidades históricas para o teólogo liberal, pressupõe-se o velho dogma materialista da divindade que não se importa com as coisas banais desse mundinho cá embaixo. Se Deus estabeleceu leis naturais e não intervém nesta realidade, significa que qualquer análise do cristianismo de nosso tempo acontecerá com pressupostos evolucionistas. Inclusive as Escrituras Sagradas. 

A abordagem moderna às Escrituras Sagradas é um fenômeno digno da mais atenta investigação, afinal, pouco importa se você é um agostiniano, tomista ou molinista, se é um calvinista ou arminiano; não-milenarista ou milenarista; se não tivermos uma compreensão exata do significado da Bíblia Sagrada para o cristianismo hoje e se não temos suficientemente o texto inspirado por Deus, por meio dos hagiógrafos, preservado até os nossos dias, como um documento histórico e pactual de primeira importância – afinal, como vimos, a fé cristã está fundamentada numa mensagem e numa narrativa de eventos relacionados à redenção, sem cujo testemunho, a salvação torna-se impossível -, como poderia ser de alguma maneira a Palavra de Deus? Infelizmente a maneira como geralmente os cristãos têm respondido aos “clamores vãos e profanos e às oposições da falsamente chamada ciência, a qual, professando-a alguns, se desviaram da fé.” (I Tim. 6:20-21), principalmente em relação à alta e à baixa crítica da bíblia, são dignas da mais contundente crítica. Tais cristãos (ou “ateus funcionais”?) veem o cristianismo apenas do aspecto sociológico, como mais um fenômeno histórico que evoluiu até chegar aos nossos dias. Nem mesmo a Bíblia Sagrada escapou dos olhos dos críticos e seus métodos para reconstruir o mundo. Se a própria história do início do cristianismo não escapou das garras dos teólogos liberais e seu método histórico-crítico – acerca da qual já falamos brevemente em outro artigo –, seria apenas questão de tempo até que a Escritura passasse a ser o objeto investigado pelo método histórico-crítico, bem como da baixa crítica. Teólogos influenciados pelo racionalismo alemão afirmavam que a adequada maneira de aproximar-se do texto das Escrituras, era da maneira mais livre possível de dogmas e encará-lo da mesma maneira como qualquer outra peça literária. Além disso, a Bíblia não era observada à luz de seus próprios termos, mas de acordo com o crivo subjetivo do investigador; a bíblia era analisada não à luz das afirmações de si mesma nem da sua cosmovisão, mas segundo as categorias modernas naturalistas. [2] Payne diz que

“[…] quando um liberal afirma que pode julgar o sobrenatural, ele, na verdade, o traz para o plano natural e nega com isso, de antemão, sua realidade. A crítica “errou” ao adotar o pressuposto contrário ao caráter potencial do objeto sob julgamento.” [3]

Com esta manobra, o teólogo liberal é capaz de agir à luz de seus pressupostos naturalistas, em seus próprios domínios: explicando todos os acontecimentos, quer do passado, quer do presente, à luz de outros acontecimentos conhecidos. Vimos que a primeira atitude do liberal, tem sido abordar o texto da Bíblia da mesma maneira como qualquer outra obra literária, com uma atitude supostamente livre de dogmas – o que, paradoxalmente, não deixa de ser um dogma. Enquanto a alta crítica lida com a fonte e a transmissão do texto (considerando sua autoria, data, ocasião) a chamada baixa crítica, ou crítica textual, segundo Roger L. Omanson, tem “o objetivo de recuperar uma forma de texto que se aproxime o máximo possível dos escritos originais […].” [4] Dois parágrafos à frente, porém, alguns pressupostos do referido autor ficam manifestados: 

“A crítica textual não se preocupa com a inspiração do Novo Testamento e não trata da questão se os textos originais continham erros de conteúdo ou não. Os manuscritos originais não existem mais. Os únicos manuscritos de que dispomos hoje são cópias de cópias.” [5]

Assim como observou Payne, acerca dos teólogos liberais, vemos Omanson repetindo o mesmo mantra liberal; “a crítica textual não se preocupa com a inspiração do Novo Testamento”; um teólogo cristão, no campo científico, deve abrir mão de sua cosmovisão? Deveria estar disposto a não preocupar-se com a negação da possibilidade de uma intervenção divina no mundo? Mas isso não é o pior; Omanson também afirma que a crítica textual também não trata da questão se os originais possuíam erros de conteúdo, ou não; e finaliza sua pálida afirmação com a repetição da inexistência dos originais. Isso foi publicado pela Sociedade Bíblica do Brasil – que publica e imprime bíblias – em uma obra que acompanha seu Novo Testamento em Grego. 

Você vê nesse exemplo, algo que comprometa a integridade da mensagem do evangelho? A sua importância já mencionamos anteriormente, e é ela que está em jogo. O enfraquecimento da autoridade objetiva das Escrituras sobre as mentes e os corações dos homens é corroborada pelas obras publicadas pelas nossas próprias editoras, as quais os seminaristas (futuros líderes das nossas igrejas) estão consumindo; coisas como as que vimos aqui, são uma ponta do iceberg. O surgimento da moderna abordagem da crítica textual (alta ou baixa) tem produzido frutos maléficos. O próprio S. T. Davis, afirmou que “O surgimento da crítica bíblica foi o fator mais importante para a erosão da força da ortodoxia na igreja cristã no século passado” [6]. Quem mais, além dos adeptos da teoria de Walter Bauer, têm interesse em reconstruir a história do cristianismo como sendo a princípio mais “plural e diverso”, e que apenas o grupo ortodoxo, após vencer as disputas políticas e religiosas dos primeiros quatro séculos, saiu vitorioso a contar sua versão da história do cristianismo que – supostamente – era na verdade “cristianismos”? Não bastasse isso, até mesmo os textos-fontes em Hebraico e Grego, usados pela maioria das Sociedades Bíblicas e Editoras cristãs modernas, no preparo das traduções da Bíblia para as mais diversas línguas, têm sido editados por homens comprometidos profundamente com o liberalismo teológico. O comprometimento com os pressupostos pós-modernos e sua visão de mundo materialista, alimentado pelas estruturas financiadas pelos cristãos comuns – quer pela aquisição de livros perniciosos ou mesmo edições da bíblia que carregam os mesmos vícios de seus editores e tradutores – é um dos fatores a corroborar a revolução cultural que atinge a igreja desde dentro e enfraquece o testemunho do evangelho. Observe como a academia repleta de “cristãos” tem olhado para a Bíblia, hoje:

“Não temos agora – em nenhum dos nossos textos gregos críticos ou em qualquer tradução – exatamente aquilo que os autores do Novo Testamento escreveram. Mesmo que tivéssemos, não o saberíamos. Há muitos, muitos lugares em que o texto do Novo Testamento é incerto”. [7]

Se a fé cristã está fundamentada no relato de eventos históricos, cuja fonte documental, é o texto do NT, como teremos certeza do conteúdo da própria mensagem, se não sabemos o que foi escrito a princípio e ninguém o possui? Ninguém sabe qual era o conteúdo original, mas sabem que não o temos hoje, embora não avancem na exposição deste “milagre materialista” – perdão pelo trocadilho. Veja como isso assola a confiança na veracidade do relato da Bíblia e como corrobora a compreensão de um deus que está fora do universo, ou que não se relaciona com eles – caso exista. 

Mas ainda há muito mais para se explorar. Lembra-se do mosaico, que havíamos dito, que o cristianismo possuía todas as partes que formavam o todo? Então… os críticos modernos não parecem estar tão seguros assim da realidade da exclusividade do cristianismo enquanto única e verdadeira religião; isso se reflete na certeza de que perdemos partes da Palavra de Deus: “Estamos tentando montar um quebra-cabeças com apenas algumas das peças”. [8] Aparentemente, não somente não podemos ter certeza de que temos a redação do texto da bíblia, como também é muito provável que tenha acontecido tanto a remoção de fragmentos textuais, quanto a inserção de floreios ao texto – compare isso a Apocalipse 22:18-19. Aqui está a palavra final do mundo cristão pós-moderno: “[…] geralmente é reconhecido que o texto original da bíblia não pode ser recuperado.” [9] Será que a mensagem de redenção está intacta? Para os modernistas, não; infelizmente até ortodoxos estão sendo levados por estes enganos.

A igreja cristã desde seu princípio possuía uma compreensão pactual com relação a Deus, sendo a bíblia a consequência natural enquanto documento pactual; a relação íntima que existe entre as alianças e os dois níveis do cânon da Bíblia (livros e palavras) no início do cristianismo, nos fornecerão respostas muito importantes às principais confusões que surgem das mentes liberais e nos fornecerão uma base para continuarmos a exposição daquilo que começamos neste artigo. Pela graça de Deus falaremos na semana que vem, acerca desta compreensão da Bíblia como um documento pactual entre Deus e seu Povo e sua relação com a doutrina da preservação. Veremos, ainda, um pouco mais acerca daqueles que estão pondo suas mãos céticas em nossas bíblias, com seu método histórico-crítico, feita à luz da própria ignorância. 

Quanto a nós? Assim estabelecido está pelo autor do livro Sagrado: “Quanto a mim, esta é a minha aliança com eles, diz o SENHOR: O meu espírito, que está sobre ti, e as minhas palavras, que pus na tua boca, não se desviarão da tua boca nem da boca da tua descendência, nem da boca da descendência da tua descendência, diz o SENHOR, desde agora e para todo o sempre” (Is. 59:21).

NOTAS

[1] CRAIG, William Lane. Apologética Contemporânea:  a veracidade da fé cristã. São Paulo, SP: Vida Nova, 2012. p. 201.

[2] PAYNE, J. Barton, in: GEISLER, Norman (org.). A inerrância da Bíblia. São Paulo, SP: Editora Vida, 2007. P. 107-142.

[3] Ibid. p. 115.

[4] OMANSON, Roger L. Variantes Textuais do Novo Testamento. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2010. p. xi.

[5] Ibid. p. xi. 

[6] DAVIS, S. T. The debate About the Bible. Philadelphia: Westminster, 1977. p. 91.

[7] HIXSON, Elijah; GURRY, Peter. Myths and Mistakes in New Testament Textual Criticism. p. xii.

[8] GURRY, Peter. A New Approach to Textual Criticism: An Introduction to the Coherence Based Genealogical Method. p. 112.

[9] Grant R. M. The Bible of Theophilus of Antioch, in: Journal of Biblical Literature, vol. 66, 1947, p. 173.

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