Diário Teológico: A Revolução Textual e o Clero Liberal

O homem pós-cristão é agnóstico; tudo o que ultrapassar o imediato céu visível, é risível diante daqueles homens que amam as experimentações, à luz do seu empirismo infinito, sem jamais cogitar coisa alguma além daquilo que as suas sensações alcançaram. O materialismo, filho de Epicuro, não considera o conteúdo de verdade, mas a sua capacidade de mobilização das massas; uma vez corrompida uma civilização em todos os aspectos, o homem pós-moderno, no alto da própria ignorância, força-se violentamente contra as colunas da moral judaico-cristã, do direito romano e da filosofia grega, vigas-mestras que sustentam o telhado do império do mal e do Cæsar redivivus – usando a terminologia de Olavo de Carvalho –, impedindo a tal mega-estrutura precipitar-se sobre a cabeça do delinquente revolucionário em questão, numa espécie de Sansão às avessas, desejoso por vingar-se, não dos pagãos que lhe perfuraram os olhos após maliciosamente ofertar amor livre por meio de Dalila e outras paixões; antes, toda a cólera deste ex-valente, agora enfraquecido, é despejada sobre seu próprio povo e o Deus de seus pais.

Uma das coisas que mais incomodam o homem pós-moderno é o caráter exclusivista do cristianismo – a insistência de que a verdadeira religião é a cristã, seu Deus, o único verdadeiro, e sua mensagem, a única cujo conhecimento e aceitação, leva a mais vil pecadora alma ao paraíso celestial –; em oposição ao espírito relativista, derivado de uma cosmovisão panteísta que promove uma diversidade derivada da filosofia oriental; o resultado de toda essa mistura é a promoção e um clima cultural propício ao pluralismo, que elevou a própria experiência humana ao patamar de árbitro da verdade: a verdade é um ponto de vista, tão verdadeiro quanto outro qualquer (Quem nunca ouviu a célebre frase: ‘todo ponto de vista é a vista de um ponto?). A natureza redentora do cristianismo, por sua vez, insiste em não ser um plano B nem mesmo o fruto de uma rasa experimentação empirista ou experiência mística; antes, é um tesouro inestimável, fundamentado em eventos históricos; é o âmago e aquilo que por fim é encontrado pelo homem em sua busca pela verdade e, achando-a, a encontra redentora, pelo auxílio da graça de Deus.

Não bastasse a auto-sabotagem de nossa civilização, um dos braços da revolução cultural que visa demover toda e qualquer autoridade além daquela que se deriva da concordância servil às causas da revolução, encontramos um estado de coisas em que a própria autoridade das Escrituras, dentro da religião cristã, é desconstruída, causando a perversão da vocação cristã, reduzindo-a a mera caixa de ressonância revolucionária, e reduzindo a escombros a coluna da moral judaico-cristã, cujo telhado não tarda em cair sobre toda uma civilização. 

Uma das causas deste estado de coisas pode ser atribuída ao enorme prestígio que desfruta os inebriados pelo mosto revolucionário, pela cegueira anti-sobrenaturalista e pelo fel materialista, detentores de prerrogativas quase divinas, concedidas pelo estado secular, estado esse que visa lançar cada vez mais para a esfera da vida particular, os incômodos da vida religiosa, essa coisa teimosa e antiquada. Por meio do desvirtuamento do clamor pela separação necessária entre a igreja e o estado, das entranhas do próprio estado totalitário e anti-cristão surge um novo clero, detentor das virtudes excelsas do secularismo a iluminar os escombros de uma civilização fundamentada sobre a mesma religião que buscam destruir, para quem não passa de mera superstição (ou o ‘ópio do povo’, segundo seu pai karl Marx), exercendo sua influência sobre os cristãos emboscados em faculdades e seminários subjugados ao reconhecimento de MEC’s e tutti quanti. Não poucos são os ministros cristãos que contribuem com essa realidade de coisas; estes não destroem a fé cristã a partir de fora, como os ateus e agnósticos; pelo contrário: fazendo uso da mesma terminologia tradicional do cristianismo, mas completamente esvaziada de sua significação tradicional, desde as entranhas da própria igreja cristã, emerge a casta dos acadêmicos cristãos progressistas, ou apenas, o novo clero secularizado. 

Agindo como verdadeiros parasitas eclesiásticos, ocupam as cadeiras nas cátedras e o primeiro lugar nas mesas, retribuindo tamanha gentileza recriando uma religião liberal conforme a própria imagem e semelhança, deixando atrás de si, um rastro de destruição da ortodoxia – está, a verdadeira heresia. Dentro das estruturas diversas das denominações cristãs, estes seres iluminados são capazes de fazer aquilo que nem os apóstolos puderam fazer: comunicar inerrantemente a ipsissima vox do Messias e as verdadeiras intenções do Jesus histórico, com um delay de dois milênios, motivo que justifica a autoridade dada para um teólogo liberal ao patamar de único porta-voz legítimo de um deus hippie e pluralista.

Uma vez que a perspectiva histórico-crítica vê o motor da história nessa dialética – tese, antítese, síntese -, o que está por trás da supostamente “perspectiva neutra” dos teólogos liberais, é justamente um compromisso a priori, com sua cosmovisão. Não há como fugir do fato de que, toda evidência é interpretada filosoficamente, à luz dos pressupostos da própria visão de mundo. Portanto, é tão enganosa a pretensa autoridade neutra dos teólogos liberais, visto que a realidade, sendo coisa que está disposta diante de nós, tal qual ela é, requererá, do investigador, ajustar seu espírito à correta compreensão do mundo que o cerca, sempre promovendo ajuste na sua própria personalidade. 

Quando no século XV aconteceu o aperfeiçoamento da imprensa, por Johannes Gutenberg, o mundo foi presenteado com a circulação da informação impressa e a difusão dos livros tal e qual conhecemos hoje, de modo que a primeira obra a ser impressa foi a Bíblia Sagrada.  É por aqui que caminharemos em nossas investigações.  A invenção da imprensa causou uma explosão no desenvolvimento da ciência da ecdótica (ou apenas: crítica textual), a qual não demorou a ser usurpada de seu fim (identificar a redação do texto do NT) para fins de promoção da religião secular (solapar a autoridade objetiva da Escritura Sagrada e promover uma religião mais ‘plural’). 

Para uma religião secular, os teólogos liberais trataram de arrumar um Cristo secular. Walter Bauer, lexicógrafo alemão, tendo feito a leitura de várias obras da literatura grega, concluiu que a diversidade era a característica das origens da religião de Jesus. O Jesus do liberalismo teológico é um pálido mestre de moral, ao passo que, segundo o relato do NT, Cristo era o próprio objeto de Fé da igreja primitiva e dos seus próprios discípulos. Mas os modernos eruditos simplesmente ignoram o NT enquanto fonte documental do início do cristianismo por estar supostamente muito contaminado por uma visão demasiadamente estreita e exclusivista do cristianismo, a princípio tão plural e diverso (a neutralidade dos teólogos liberais elevada à décima potência). Diferente daquilo que imaginam acerca de si mesmos, os teólogos liberais não estão numa elevada posição, acima do bem e do mal, pois a substância da doutrina do Jesus mítico é resultante não de uma “neutralidade” diante das evidências do início do cristianismo, mas à luz de um compromisso profundo com a visão de mundo materialista (pressupondo que, mesmo que haja alguma divindade, ela não se interessa com os assuntos desse mundinho pueril). Por isso os liberais insistem que no princípio não havia “cristianismo”, mas sim, “cristianismos” concorrentes, sendo os ortodoxos o grupo vencedor que supostamente contou a história em detrimento dos outros cristianismos. A baixa crítica textual – cujo conceito deixamos registrado acima – tornou-se apenas um pretexto para levar os desavisados a banquetearem-se destas bolotas, enquanto são conduzidos como um jumentinho que persegue a cenoura, até à alta crítica que, por conseguinte, termina por consumar o naufrágio da fé, pela perversão mesma da mensagem cristã desde sua história à sua fonte documental. 

Todos quantos defendem minimamente que Deus preservou cada singular palavra das Escrituras em todas as eras para conhecimento do seu povo, mais cedo ou mais tarde, sofrerão desencorajamento em manter tal posição; o desencorajamento não virá de fora da cristandade, mas de irmãos na fé, entorpecidos pelo academicismo.  Isso ocorre geralmente por um contínuo processo de amordaçamento e silenciamento das vozes discordantes da opinião geral da abordagem restauracionista em detrimento da preservacionista.

Verdadeiramente existe um silenciamento por parte da academia, da defesa dos textos tradicionais há pelo menos um século nos seminários cristãos; isso se dá pela abertura ao liberalismo teológico, ecumenismo e baixa crítica feita por quem pressupõe a alta crítica. Basta-nos ver que atualmente, não há uma obra sequer em circulação, publicada por editoras cristãs, do Brasil, que defendam sem reservas o texto hebraico tradicional Massorético (Ginsburg, 1894), também conhecido como a Segunda Bíblia Rabínica de Jacob ben Abn Adonijah (Jacob ben Shayim), editada por Christian David Ginsburg, embora haja uma obra-padrão de grande magnitude em defesa desta edição, cujo título é: “Introduction of the Massoretico-critical edition of the Hebrew Bible”. Em compensação, temos obras em defesa da Bíblia Hebraica Stuttgartensia, em especial a obra “A Crítica Textual da Bíblia Hebraica” de Emanuel Tov. Também se defende a LXX e os Manuscritos do Mar Morto (“A Bíblia Grega & Hebraica”, Emanuel Tov).  

Igualmente, não existe nenhuma obra traduzida e publicada que defenda o texto grego tradicional Recebido (Textus Receptus, Scrivener, 1894); em circulação, publicada por uma editora cristã no Brasil, nada temps; apesar disso, temos uma obra excelente produzida por Scrivener em defesa desse texto (“A Plain  Introduction to the Criticism of the New Testament”), sem falar das obras clássicas de John William Burgon (“Revision Revised”, “The Traditional Text of the Holy Gospels” e “The Las Twelve Verses of the Gospel According to St. Mark”). Tudo isso, num país em que mais de cinquenta por cento das Bíblias vendidas, são as Almeidas que seguem os textos tradicionais (ACF e ARC). Em compensação, não nos faltam obras que defendam o texto eclético e o NT Grego Crítico de Nestle-Aland (“Variantes Textuais do Novo Testamento”, Roger L. Omanson; “Uma Introdução aos Escritos do Novo Testamento”, Eric Mauerhofer; “Origem e Transmissão do Texto do Novo Testamento” e “Crítica Textual do Novo Testamento”, ambos de Wilson Paroschi). Repito: não é falta de produção intelectual em defesa dos textos tradicionais; é um silenciamento intencional por parte da academia; fenômeno comum em todo o mundo pós-moderno. Nem preciso repetir que é um problema de cosmovisão. 

A maneira que os modernos críticos de texto têm logrado êxito e solapado a autoridade das Escrituras no meio cristão é digna de maiores detalhes e um novo exame, que, pela graça de Deus, será apresentado ao público na próxima semana. Por agora, podemos ter uma certeza: se você almeja uma carreira acadêmica, definitivamente não lhe indico defender publicamente os textos tradicionais das Escrituras Sagradas e o uso exclusivo de versões bíblicas derivadas deles. O fato é que, considerando a unanimidade do Texto Crítico, tanto nos seminários, quanto no próprio mercado editorial cristão, o máximo que você alcançará, será a pecha de excêntrico, advindo dessa posição. Qualquer mínima reação justa àqueles que, começando por excluir porções significativas das Escrituras, prosseguem questionando a autoria dos livros bíblicos e, por fim, sua exclusão do cânon, é tida pelo cristão pós-moderno como reação desproporcional e exagerada, digna de um bitolado fundamentalista. Qualquer cristão “esclarecido”, afirmam, deveria estar disposto a abrir concessões cada vez maiores; tudo por um lugar na mesa dos bacanas.

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