Diário Teológico: A segurança em Cristo e o cair da graça – parte IV

Em nossa série sobre este tema, poderíamos resumir nossa posição com a seguinte afirmação: a Graça Preveniente produz Fé em eleitos e não-eleitos, mas apenas os Eleitos adentram à Graça Salvadora e, por conseguinte, perseveram até o fim como consequência da eleição.

De acordo com a nossa compreensão acerca da relação direta entre a Eleição e a Perseverança, considerando que a eleição é condicional no arminianismo, a perseverança na fé também o é. Por qual razão? A fé, enquanto considerada como “[…] primariamente, “persuasão firme”, convicção fundamentada no ouvir (cognato de peithõ, ‘persuadir’), sempre é usado no Novo Testamento acerca da “fé em Deus ou em Jesus, ou às coisas espirituais”,[1] precisa ser compreendida como um produto da graça preveniente com potencialidade, mas não necessidadedesignificar a entrada do indivíduo à graça salvadora; caso ocorresse isso, então deveríamos afirmar que alguém pode “cair da graça” [salvadora], isto é, “perder sua salvação”.

O que estamos afirmando é a possibilidade da graça preveniente produzir nos homens a mesma “persuasão firme”, a fé, mas não a fé que conduz à entrada à graça salvadora, a qual é peculiar aos eleitos segundo a presciência de Deus; a fé é firme; o que vacila é o objeto de fé, que não é Cristo. Em sua obraEleitos, mas livres, Norman Geisler demonstra que a fé não é peculiar ao eleito, ao mesmo tempo em que nega que alguém adentre à graça salvadora e dela seja removido. Segundo Geisler, acerca da fé ser dom exclusivo dos eleitos,

“A convicção de que a fé é um dom especial de Deus [exclusivo para o eleito] combina com o entendimento do calvinista extremado da depravação total e com a necessidade de a regeneração ser anterior à fé.[2]”

Quanto à possibilidade de alguém “perder a salvação”, isto é, cair do estado de graça salvífico, Geisler afirma que

“O argumento arminiano seguinte é sobre a natureza da fé. Os arminianos [de cinco pontos] afirmam que, se podemos exercer fé para “estar em” Cristo, podemos usar a mesma fé para “sair de Cristo”. […] Não ser capaz de fazer isso, insistem, significaria que, uma vez que obtemos a salvação, não mais seremos livres. A liberdade é simétrica; se você tem a liberdade de ser salvo, também tem a liberdade de ser perdido para sempre.”

“[…] por essa mesma lógica, o arminiano [de cinco pontos] teria de argumentar que podemos ficar perdidos mesmo após termos chegado ao céu. De outra forma, ele teria de negar que somos livres no céu. Porém se somos livres ainda no céu, mas não podemos nos perder, por que é logicamente impossível ser livre na terra, mas nunca perder a salvação? Em ambos os casos, a resposta bíblica é que o poder absoluto de Deus é capaz de guardar-nos da queda – de acordo com nossa livre-escolha.[3]

Mais a frente, em sua exposição de Efésios 2:8-9: “Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus. Não vem das obras, para que ninguém se glorie”, quando demonstra que a salvação é dom de Deus, e que o meio para adentrarmos à salvação é a fé, Geisler comenta que:

“[…] está muito claro no texto grego que Efésios 2.8,9 não está se referindo à fé como um dom de Deus. A palavra grega touto (“isto”), sujeito de “é dom de Deus”, é neutra na forma e não pode se referir à fé, que é feminino. O antecedente de “isto é dom de Deus” é a salvação pela graça por meio da fé (v. 9). Comentando essa passagem, o grande estudioso do Novo Testamento A. T. Robertson observa: “A ‘graça’ é a parte de Deus, a ‘fé’ é a nossa. E “isto” (kai touto), é neutro, não o feminino taute. Portanto, não se refere a pistis (‘fé’) ou a charis (‘graça’), mas ao ato de ser salvo pela graça condicionado à fé de nossa parte” (Word Pictures in the New Testament, v. 4, p. 525).”

“[…] Em nenhum lugar a Bíblia ensina que a fé salvadora é um dom especial de Deus somente a uns poucos escolhidos. Ademais, em todo lugar a Bíblia supõe que todo o que deseja ser salvo pode exercer fé salvadora [Nota de fim: […] Seria irrazoável condenar alguém por não ter feito algo que lhe era impossível fazer tanto por si mesmo quanto com a ajuda de Deus].” [4]

Em sua tentativa de escapar do determinismo próprio da mecânica da salvação calvinista, Geisler afirma que a fé salvadora não é peculiar ao eleito; isso de modo algum está em desacordo com aquilo que estamos afirmando aqui, a saber, a universalidade e veracidade do convite de salvação para todos os homens, pois a vontade de Deus é que todos sejam salvos (II Timóteo 2:4); quando afirmamos que a fé é peculiar ao eleito, estamos dizendo que aqueles que, por fim, se apossarão desta bênção que está verdadeira e completamente disponível para todos os homens, são os eleitos, a saber, aqueles que estão unidos ao Filho de Deus, porque creram no seu nome. Geisler tem em vista a disponibilidade da graça salvadora, ao passo que nós, temos em vista a aplicabilidade desta graça nos seus recebedores. Considerando o que foi afirmado por Norman Geisler, que a fé é a resposta humana possibilitada pela graça preveniente; e uma vez que

“Quando falamos de “graça preveniente” estamos pensando na [graça] que “precede”, que prepara a alma para a sua entrada no estado inicial da salvação. É a graça preparatória do Espírito Santo exercida para o homem enfraquecido pelo pecado. Pelo que se refere aos impotentes, é tida como força capacitadora. É aquela manifestação da influência divina que precede a vida de regeneração completa.[5]

Mais a frente, vemos que a graça preveniente desperta, mas não salva; capacita, mas não coopta; apenas os eleitos dão um passo mais a frente e adentram à graça salvadora, embora saibamos que, pela natureza onibenevolente de Deus, todos poderiam tê-lo feito, caso assim procedessem; tal “manifestação da influência divina que precede a vida de regeneração completa”, é capaz de produzir no homem , tanto em eleitos quanto em não-eleitos, uma vez que a fé não é peculiar aos eleitos, no sentido em que explicamos acima e como bem demonstrou Norman Geisler; entretanto, a fé perseverante é peculiar aos eleitos, e a perseverança apenas é possível porque estes adentram à graça salvadora de uma vez por todas, diferente daqueles que apenas estão parcialmente regenerados, ou seja, apenas iluminados e atraídos com luz excedente, mas ainda andam vacilantes e não adentram à graça salvadora:

“Em um sentido, então, os arminianos, como os calvinistas, creem que a regeneração precede a conversão; o arrependimento e a fé são somente possíveis porque a velha natureza está sendo dominada pelo Espírito de Deus. A pessoa que recebe a total intensidade da graça preveniente (isto é, através da proclamação da Palavra e a chamada interna correspondente de Deus) não mais está morta em delitos e pecados. Entretanto, tal pessoa não está ainda completamente regenerada. A ponte entre a regeneração parcial pela graça preveniente e a completa regeneração pelo Espírito Santo é a conversão, que inclui arrependimento e fé. Estes se tornam possíveis por dádiva de Deus, mas são livres respostas da parte do indivíduo. “O Espírito opera com o concurso humano e por meio dele. Nesta cooperação, contudo, dá-se sempre à graça divina preeminência especial”.[6]

Fica mais claro ainda que é parte da Teologia Arminiana a regeneração parcial como distinta da regeneração completa; daí, podemos compreender o “Arminianismo” dos Batistas brasileiros – que preferimos chamar aqui de “soteriologia batista tradicional” –, pela inserção de uma distinção entre fé perseverante e fé temporária: ambas são produto da mesma graça preveniente, mas a regeneração completa ocorre ao homem que adentra à graça salvadora, enquanto que a segunda, apesar de iluminá-lo e produzir uma fé com potencialidade para regeneração, mantém o indivíduo em estado de regeneração parcial, à parte da graça salvadora por estar eleainda resistindo a ela, apesar de, por vezes, haver confissão de fé; desta fé o indivíduo declinará nalgum momento por sua própria rebeldia, sem, no entanto, nunca ter adentrado à graça da salvação, como sua falta de perseverança demonstrará, levando-o ao naufrágio da fé:

“Wiley observa [que], a graça preveniente não interfere na liberdade davontade. Ela não dobra a vontade ou torna certa a resposta da vontade. Elasomente capacita a vontade a fazer a escolha livre para cooperar ou resistirà graça [salvadora]. Essa cooperação não contribui para a salvação, comose Deus fizesse uma parte e os humanos fizessem outra parte. Antes, acooperação com a graça [salvadora] na teologia arminiana ésimplesmente não resistência à graça [salvadora]. É meramente decidirpermitir a graça [salvadora] fazer suaobra renunciando a todas astentativas de autojustificação e autopurificação e admitindo que somenteCristo possa salvar. Todavia, Deus não toma esta decisão pelo indivíduo; éuma decisão que os indivíduos, sob a pressão da graça preveniente, devemtomar por si mesmos” [7].

Considerando isto, depreende-se que é verdadeira a possibilidade de alguém declinar da fé, uma vez que o homem pode confiar por algum tempo, vindo depois, a privar-se da graça de Deus (Heb. 12:14-15); mas isto apenas é possível àqueles que, despertados por um tempo pela graça preveniente, jamais adentram à graça salvadora, mas nalgum momento possuem fé e podem demonstrar até mesmo determinadas características similares aos salvos, mas não possuem de fato salvação: “o qual recompensará cada um segundo as obras; a saber: a vida eterna aos que, com perseverança em fazer bem, procuram glória, honra e incorrupção” (Rom. 2:6-7). Armínio afirma que:

“[…] é impossível que os crentes, desde que permaneçam fiéis, venham a perder a salvação. Porque se isso fosse possível, o poder que Deus decidiu empregar para salvar os crentes seria vencido. Por outro lado, se os crentes apostatarem da fé e se tornarem incrédulos, é impossível que eles não se desviem da salvação, ou seja, desde que continuem incrédulos.” [8]

Armínio trouxe em sua teologia as questões “perda de salvação” e “perda da fé”; pelo que temos conhecido sobre a questão, até agora, os Batistas brasileiros sempre distinguiram bem entre as duas coisas, numa busca pelo equilíbrio, como bem demonstram seus documentos confessionais.

Conclusão a esta série de artigos:

Assim como Jacó Armínio, nós, batistas, cremos que “é impossível que os crentes, desde que permaneçam fiéis, venham a perder a salvação” – grifo nosso; ao mesmo tempo, nos unimos ao coro arminiano que entoa que “se os crentes apostatarem da fé e se tornarem incrédulos, é impossível que eles não se desviem da salvação, ou seja, desde que continuem incrédulos” – grifo nosso. Para Armínio, “crentes” e “eleitos” são termos técnicos bem específicos.

Certamente, aqui está o ponto nevrálgico: a possibilidade de perder a salvação contraria a eleição segundo a presciência, e a possibilidade não é para ser considerada na menor hipótese por nós; ao mesmo tempo, é possível que alguém apostate da fé e se perca para sempre, e desde que este persevere em sua rebelião, o tal perde a porta da graça que lhe fora aberta, não porque Deus não o buscou ou chamou, nem porque não o amou, mas porque “aquele que não crê no Filho não verá a vida, mas a ira de Deus sobre ele permanece” (João 3:36).

Assim como a graça salvadora é peculiar aos eleitos, somos capazes de nos unir aos Batistas Nacionais e afirmar que “Cremos que só são crentes verdadeiros aqueles que perseveram até o fim; que a sua ligação perseverante com Cristo é o grande sinal que os distingue dos que professam superficialmente […]”.[9]Consequentemente, nos ajuntamos aos Batistas Brasileiros e afirmamos também que “O novo nascimento, o perdão, a justificação, a adoção como filhos de Deus, a eleição e o dom do Espírito Santo asseguram aos salvos a permanência na graça da salvação […]”.[10] Podemos, então, afirmar, juntamente com os Batistas Regulares, quanto à salvação, que “Obtê-la ou mantê-la não depende de méritos humanos (Tito 3.4—7; 1 João 5.9—13)”.[11]

NOTAS:

[1] VINE, W. E. Dicionário Vine: O significado exegético e expositivo das palavras do Antigo e do Novo Testamento. Rio de Janeiro, RJ: Thomas Nelson Brasil/CPAD: 2011. p. 648.

[2] GEISLER, Norman. Eleitos, mas livres: uma perspectiva equilibrada entre a eleição divina e o livre-arbítrio. São Paulo, SP: Editora Vida, 2005. p. 214.

[3] GEISLER. Eleitos, mas livres. p. 141-142.

[4] GEISLER, Norman. Eleitos, mas livres: uma perspectiva equilibrada entre a eleição divina e o livre-arbítrio. São Paulo, SP: Editora Vida, 2005. p. 215, 223, 306-307.

[5] ARMINIANISMO. O que é a graça preveniente? Disponível em (https://arminianismo.wordpress.com/2012/09/05/o-que-e-a-graca-preveniente/). Acessado em 20 de agosto de 2018. Grifo nosso.

[6] Ibid.

[7] Ibid.

[8]As Obras de Armínio. p. 258.

[9] MANUAL BÁSICO BATISTA NACIONAL E MANUAL DA ORMIBAN. Declaração de Fé. p. 23-24.

[10] CONVENÇÃO BATISTA BRASILEIRA. Declaração Doutrinária da Convenção Batista Brasileira de 1986. Disponível em (https://goo.gl/ bpmk3H). Acessado em 20 de agosto de 2018.

[11] EDITORA BATISTA REGULAR. Os Distintivos dos Batistas Regulares. Disponível em: <http://editorabatistaregular.com.br/os-distintivos-dos-batistas-regula res/>. Acessado em 18 de agosto de 2018.


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