1. Introdução.
É fato que a maior parte dos Batistas brasileiros [1], no que diz respeito à soteriologia – doutrina da salvação -, se enquadra no que se pode considerar “soteriologia anabatista” que, proximamente, encontra sua versão reformada num tipo de “arminianismo de quatro pontos”. A maneira como normalmente os Batistas afirmam sua soteriologia tem recebido inúmeros nomes, desde “arminianismo de quatro pontos” (que julgo ser o mais adequado dentro do espectro “arminianismo/calvinismo”), até mesmo “calvinismo moderado”, por negar o ‘cair da graça’.
Quanto a tal nomenclatura, não considero de forma alguma que a soteriologia dos Batistas brasileiros possa ser corretamente chamada de calvinismo de qualquer natureza; o assim chamado “calvinismo moderado” recebe tal alcunha apenas por causa do quinto ponto do acrônimo calvinista TULIP: “A Perseverança dos Santos”, ao passo que afirma quatro pontos do arminianismo é comumente afirmado pelos mesmos “calvinistas moderados”.
Os Batistas Calvinistas que temos em terras brasileiras tendem a apresentar um calvinismo bastante consistente com o agostinianismo de seu proponente, o teólogo francês João Calvino (1509-1564), perpassando o calvinismo de Jonathan Edwards (1703-1758) e de George Whitefield (1714-1770), em especial quando comparamos tal “calvinismo consistente” com o tipo de “calvinismo moderado” apresentado por Norman Geisler, na sua obra “Eleitos, mas Livres: uma perspectiva equilibrada entre a eleição divina e o livre-arbítrio”[2]; a considerar a obra, o abismo se mostra intransponível. Acredito que grande parte dos Batistas brasileiros que já teve a oportunidade de ler aquela obra, identificou-se como “calvinista moderado”, apesar de o autor defender claramente um tipo de arminianismo de quatro pontos particularmente batista.
A priori, pode-se afirmar que os Batistas brasileiros, a julgar pelos seus documentos oficiais, em termos gerais, subscrevem quase que a totalidade do sistema arminiano na soteriologia com a exceção do quinto ponto, a “Segurança em Cristo”, em decorrência daquele ponto do acrônimo arminiano FACTS afirmar a possibilidade de um salvo “cair da graça” e “perder a sua salvação”, o que não é aceito pelos Batistas brasileiros. Apesar disso, um Arminiano não tem de subscrever a totalidade da obra de Jacó Armínio (1560-1609) para que possa identificar-se como tal.
2. É Preciso concordar totalmente com Armínio para que se possa ser um Arminiano?
Roger Olson, em seu artigo “Must one agree with Arminius to be Arminian?” [“Deve alguém concordar com Armínio para ser um Arminiano?”], questiona: “[…] alguém deve concordar inteiramente com Armínio para que possa ser um Arminiano. Minha resposta é ‘Não’.” [3] Olson afirma que, assim como o calvinismo não está totalmente amarrado nem está girando em torno exclusivamente de João Calvino e de sua obra, embora o sistema soteriológico leve o seu nome, não deve ser assim considerado; o mesmo vale para o sistema que segue a compreensão de Jacó Armínio.
Uma vez que, como veremos a seguir, existe concordância com boa parte do sistema de soteriologia arminiano, não há razões para negarmos tal afinidade apenas por não crermos no “cair da graça”. Olson diz ainda:
“De fato, eu diria que o Arminianismo já era crido e ensinado muito antes de Armínio. O Arminianismo é simplesmente uma versão Protestante Reformada da soteriologia dos antigos pais da igreja grega (Thomas Oden explica esse ponto em The Transforming Power of grace [O Poder Transformador da Graça]). Anos atrás, quando lemos os teólogos Anabatistas Balthasar Hubmaier e Menno Simons (que viviam antes de Armínio), achei os relatos de soteriologia basicamente os mesmos de Armínio – pelo menos em termos de ethos e impulsos gerais”. [4]
Desta feita, não é por causa do quê divergimos, mas por causa daquilo que concordamos em relação aos arminianos e, até ao próprio teólogo holandês, neste ponto, que deixaremos de concordar com outros aspectos substanciais de sua teologia, e comprometer, assim, nossa concordância a tal corrente teológica nestes pontos específicos. As principais associações e convenções Batistas brasileiras, oficialmente, parecem aderir a alguma forma de arminianismo. Isto é o que passamos a analisar agora.
3. Um tipo de “arminianismo de quatro pontos” como comum aos Batistas brasileiros.
Neste artigo, tentaremos não adentrar pormenorizadamente a todos os cinco pontos do arminianismo, visto não ser este nosso propósito; na medida do possível, circularemos ao redor especificamente do quinto ponto, uma vez que a “Segurança em Cristo” é o ponto mais discutido entre arminianos e suscita as maiores discordâncias; ao mesmo tempo, a “Segurança em Cristo”, conforme compreendida pelos Batistas brasileiros, consiste numa união vital entre o crente e o seu Salvador, eternamente.
Acreditamos estar bastante claro para todos, que os Batistas brasileiros são adeptos algum tipo de arminianismo de quatro pontos em sua soteriologia; isto se dá porque nós subscrevemos quatro dos cinco pontos do arminianismo, a saber: 1) a Radical Depravação, 2) a Eleição Condicional ou segundo a Corporativa, 3) a Graça Resistível, e 4) a Expiação Ilimitada.
Quanto ao último ponto, como afirmamos anteriormente, que é 5) a Segurança em Cristo (ou a “segurança condicional”), sempre há um adendo especial para o que compreendemos como consistindo essa nossa “segurança em Cristo”, não considerando correta uma designação tal qual “segurança condicional”, a qual implica a possibilidade de “cair da graça”, i.e., perder a salvação; ao mesmo tempo, não consideramos que faça jus ao que cremos, a designação calvinista de “perseverança incondicional” em virtude do determinismo implícito no uso deste termo, pelos calvinistas.
Grande parte dos Batistas brasileiros, para não ferirem suas consciências, embora afirme quatro dos cinco pontos do arminianismo, e rejeite quatro dos cinco pontos do calvinismo, prefere não aderir oficialmente a nenhuma das duas escolas; é comum ouvirmos em nossos círculos a frase célebre: “eu não sou arminiano e nem calvinista, mas Batista”.
Isto é o que passo afirmar: não há razões para deixarmos de nos identificar como Batistas, uma vez que o sistema arminiano de quatro pontos existe e a ele aderirmos, embora usemos outras nomenclaturas; por outro lado, não temos de abraçar o quinto ponto da maneira como comumente os arminianos clássicos o abraçam; não é pelo fato de crermos na impossibilidade de um salvo “cair da graça” que isso nos torna compulsoriamente calvinistas, embora também muitos Batistas brasileiros acreditem serem calvinistas por tal razão; de fato, não concordamos com a possibilidade de um novo nascido declinar na fé e perder a salvação e isso é o que nós, Batistas brasileiros, geralmente afirmamos.
À luz das informações supracitadas, eu quero fazer uma análise do quinto ponto, a fim de buscar um aclaramento da questão de maneira que se compreenda melhor a relação da Perseverança do salvo, dentro a soberania Divina, sem remover a plena liberdade humana em seu livre-arbítrio, ao mesmo tempo em que deve-se considerar seriamente as muitas advertências das Escrituras quanto à possibilidade de alguém vir a perder a fé, e qual o verdadeiro significado destas advertências.
A evidência de que os Batistas brasileiros consideram a salvação como eterna e incapaz de ser perdia, pode ser encontrada no documento oficial da Convenção Batista Brasileira (CBB), na sua Declaração Doutrinária de 1986 (DD), mais precisamente no artigo VI, que fala sobre a Eleição; lemos que
“[A] Eleição é a escolha feita por Deus, em Cristo, desde a eternidade, de pessoas para a vida eterna, não por qualquer mérito, mas segundo a riqueza da sua graça.1 Antes da criação do mundo, Deus, no exercício da sua soberania divina e à luz de sua presciência de todas as coisas, elegeu, chamou, predestinou, justificou e glorificou aqueles que, no correr dos tempos, aceitariam livremente o dom da salvação.2 Ainda que baseada na soberania de Deus, essa eleição está em perfeita consonância com o livre-arbítrio de cada um e de todos os homens.3 A salvação do crente é eterna. Os salvos perseveram em Cristo e estão guardados pelo poder de Deus.4 Nenhuma força ou circunstância tem poder para separar o crente do amor de Deus em Cristo Jesus.5 O novo nascimento, o perdão, a justificação, a adoção como filhos de Deus, a eleição e o dom do Espírito Santo asseguram aos salvos a permanência na graça da salvação.6 ([1] Gn 12.1-3; Ex 19.5,6; Ez 36.22,23,32; 1Pe 1.2; Rm 9.22-24; 1Ts 1.4 [2] Rm 8.28-30; Ef 1.3-14; 2Ts 2.13,14 [3] Dt 30.15-20; Jo 15.16; Rm 8.35-39; 1Pe 5.10 [4] Jo 3.16,36; Jo 10.28,29; 1Jo 2.19 [5] Mt 24.13; Rm 8.35-39 [6] Jo 10.28; Rm 8.35-39; Jd 24).[5]”
Atentando para a DD da CBB podemos ver claramente que a doutrina da Eleição para a salvação, afirmada oficialmente, é inteiramente anabatista, portanto, “pende” ao sistema arminiano; o primeiro ponto do arminianismo, o da Eleição Condicional, é segundo a presciência de Deus (IPed. 1:2); além disso, é corporativa (cf. Ef. 1:3ss.). Também salta aos olhos a afirmação do livre-arbítrio, totalmente negado veemente pelos calvinistas, incluindo os Batistas que aderem a tal escola soteriológica; sobre a nossa liberdade, a DD da CBB afirma que “Ainda que baseada na soberania de Deus, essa eleição está em perfeita consonância com o livre-arbítrio de cada um e de todos os homens”.
Ao mesmo tempo em que se afirma concomitantemente a eleição e o livre-arbítrio, afirma-se a perseverança do salvo na graça e estado da salvação, até o fim, diferindo do arminianismo clássico, o qual afirma a possibilidade da “perda da salvação”; discorda também do calvinismo que nega o livre-arbítrio e explica a “perseverança” por seu combatibilismo problemático. Para os Batistas brasileiros, “a salvação do crente é eterna; os salvos perseveram em Cristo e estão guardados pelo poder de Deus”; os motivos para não crermos na possibilidade do “cair da graça” também são mencionados, a saber, a entrada à graça salvadora. Isto afirmamos também.
Concluímos quanto à DD da CBB que, quando ela afirma que “O novo nascimento, o perdão, a justificação, a adoção como filhos de Deus, a eleição e o dom do Espírito Santo asseguram aos salvos a permanência na graça da salvação”, cremos, corroborando ao documento, que o crente em Cristo Jesus, o verdadeiramente Eleito, o qual Deus de antemão conheceu, invariável e certamente perseverará, mas por razões diferentes do determinismo Calvinista.
Tal perseverança na fé é certa e se dá pelo fato de que, apesar de estar “em perfeita consonância com o livre-arbítrio”, como crentes na presciência Divina, deve-se igualmente considerar que “Antes da criação do mundo, Deus, no exercício da sua soberania divina e à luz de sua presciência de todas as coisas, elegeu, chamou, predestinou, justificou e glorificou aqueles que, no correr dos tempos, aceitariam livremente o dom da salvação”. Uma vez que um homem livremente adentra à graça da salvação, jamais é removido de tal posição de salvo; esta é a posição oficial da CBB, a qual corroboramos por aparentemente resumir a posição tradicional Batista.
NOTAS
[1] Aqui utilizo o termo “batistas brasileiros” com o seu sentido amplo referente à nacionalidade destes batistas e não ao uso do termo em seu sentido mais específico como referente aos batistas cujas igrejas são filiadas à Convenção Batista Brasileira (CBB).
[2] GEISLER, Norman. Eleitos, mas livres: uma perspectiva equilibrada entre a eleição divina e o livre-arbítrio. Editora Vida, 2005. Esta é uma excelente obra, como já se é de esperar de Norman Geisler; ela está repleta de insights que se propõem a apresentar, segundo o autor, um “calvinismo moderado”, que, na verdade consiste numa soteriologia anabatista, que encontra uma forma reformada no “arminianismo de quatro pontos”.
[3] OLSON, Roger. Must one Agree with Arminius to be Arminian? Disponível em Patheos. Disponível em: (http://www.patheos.com/blogs/rogereolson/2013/11/must-one-agree-with-arminius-to-be-arminian). Acessado em 18 de agosto de 2018. Grifo nosso.
[4] Ibid.
[5] CONVENÇÃO BATISTA BRASILEIRA. Declaração Doutrinária da Convenção Batista Brasileira de 1986. Disponível em <https://goo.gl/bpmk3H>. Acessado em 18 de agosto de 2018. Grifo nosso.