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Juízes desafiam lei das “saidinhas” e concedem progressão de pena sem exame criminológico

Mesmo antes da derrubada do veto parcial de Lula à proibição das saidinhas temporárias de presos, a Lei 14.843/2024 já estava provocando controvérsias no mundo jurídico.

A nova legislação, promulgada em 11 de abril, exige que, para a concessão da progressão da pena do regime fechado para o semiaberto ou aberto, seja feito um exame criminológico no presidiário. Mas juízes e até ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) já divergiram a respeito do cumprimento deste trecho da lei, sendo que, em algumas decisões, optaram por conceder a progressão de regime sem que o exame fosse realizado.

O exame criminológico é uma avaliação psicológica por meio da qual se demonstra se o detento tem ou não chances de voltar a cometer crimes, caso passe para o regime semiaberto ou o aberto. São avaliadas questões de ordem psicológica e psiquiátrica do presidiário, tais como grau de agressividade, periculosidade e maturidade para o retorno ao convívio social.

Até 2003, o exame era obrigatório para que a progressão da pena fosse concedida, mas, a Lei 10.792, do mesmo ano, alterou o artigo 112 da Lei de Execuções Penais e permitiu que o exame fosse substituído por um atestado de bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do presídio.

Nada impedia, contudo, que o exame fosse solicitado, conforme decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Assim, na prática, o exame passou a ser realizado quando havia o pedido de progressão de pena de indivíduos considerados de alta periculosidade ou no caso de crimes graves.

Em 2022, o Projeto de Lei 2253/22, batizado de “PL das Saidinhas”, previu que a realização do exame criminológico voltasse a ser obrigatória para todos os pedidos de progressão de pena. O projeto também estabelecia o fim das saídas temporárias.

No início de 2024, o assassinato do sargento Roger Dias, de 29 anos, em Belo Horizonte, por um detento que não retornou à prisão após a “saidinha de Natal”, acelerou a tramitação da proposta, que foi aprovada primeiramente no Senado, em fevereiro, e depois na Câmara dos Deputados, em 20 de março.

Lula acabou vetando uma parte da lei que impedia a saída temporária de presos para visitar suas famílias, sem alterar a questão da obrigatoriedade do exame criminológico. Nesta terça-feira (28), os parlamentares derrubaram o veto parcial de Lula.

Por que alguns juízes não estão aplicando a nova regra?

Os juízes que têm concedido a progressão sem a realização do exame, na maior parte dos casos, justificam que a solicitação do benefício havia sido feita antes da entrada em vigor da lei, em 11 de abril deste ano, e que, portanto, a nova regra não caberia nesses casos.

O desembargador Amable Lopez Soto, da 12ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, defende essa interpretação. Ele concedeu o benefício a um condenado que teve a progressão de regime negada em primeira instância.

Em seu voto, o magistrado afirmou que a realização do exame prejudica o preso e que, portanto, não pode ser retroativa e aplicada nas progressões de regime solicitadas antes da entrada em vigor da nova norma.

“A exigência de exame criminológico, que antes era mera faculdade a ser avaliada no caso concreto, afigura-se mais gravosa ao sentenciado e, portanto, não pode retroagir para alcançar pedido de progressão anteriormente formulado, caso dos presentes autos”, escreveu o desembargador.

Há também decisões que dizem que a exigência do exame afronta o princípio da individualidade da pena, sendo, deste modo, inconstitucional, como o fez o juiz André Luiz Bastos, do Tribunal de Justiça de São Paulo, ao analisar o pedido de um detento para progressão ao regime semiaberto, em abril deste ano.

“Fere o princípio constitucional da individualização da pena, na medida em que impõe genérica e indistintamente a realização do exame criminológico a todos os reeducandos, em flagrante desprezo à análise individual e concreta de cada caso de acordo com a natureza do crime, e, especialmente, o histórico carcerário do indivíduo durante o cumprimento da pena”, escreveu.

Outro argumento utilizado para defender a nãoobrigatoriedade do exame criminológico é de que ele pode atrasar a concessão dobenefício para os presidiários que realmente estejam aptos. Alega-se, ainda, ainsuficiência de recursos públicos para a realização do exame em todos osprocessos de progressão, bem como a falta de pessoal qualificado para tanto.

Especialistas e políticos veem exame criminológico como norma procedimental

O entendimento adotado nesses dois casos, porém, não é unânime. Especialistas e políticos ouvidos pela Gazeta do Povo defendem que a realização do exame criminológico é uma norma procedimental, ou seja, é somente um passo no processo necessário para que seja concedido o benefício ou não e que, por essa razão, pode e deve ser aplicada imediatamente.

Para o senador Sérgio Moro (União-PR), ex-juiz federal e um dos parlamentares que votaram a favor do PL das Saidinhas, o exame criminológico é apenas um procedimento, que consiste na forma de aferir o “mérito” do condenado, ou seja, se ele tem condições de progredir de regime de cumprimento de pena.

“Sendo norma procedimental, vale de imediato para todos os casos, mesmo para crimes ocorridos antes da publicação da Lei 14.843/2023”, afirma.

O ex-juiz federal ainda comenta que o próprioSupremo Tribunal Federal (STF) já admitia, com base no art. 33, § 2, do CódigoPenal, que o juiz de execução, aquele responsável por decidir sobre aprogressão da pena, determinasse a realização do exame criminológico paradecidir sobre a progressão de regime e que a nova lei apenas torna essapossibilidade uma exigência.

O procurador do Ministério Público de São Paulo (MPSP) Marcio Sérgio Christino tem uma visão semelhante. Ele explica que, como se trata de uma etapa do processo para verificar se o benefício pode ou não ser concedido ao presidiário, o conceito de retroatividade, segundo o qual a lei não pode retroagir para prejudicar o réu, não se aplica à questão do exame criminológico.

Ele ainda afirma que, em si, o exame não é bom ou ruim, pois não se pode presumir que ele vai ser contra ou a favor do réu e que, por fazer parte do processo, sua aplicação é imediata, tendo o pedido de progressão de pena sido iniciado antes ou depois da promulgação da Lei.

Esse foi o entendimento utilizado pelodesembargador Mens de Mello, da 7ª Câmara de Direito Criminal do TJ-SP, queaplicou a nova lei ao acatar um recurso do Ministério Público (MP), de marçodeste ano, antes, portanto, da entrada em vigor da nova lei. No caso, o MPpediu a anulação de uma progressão de regime que havia sido concedida emprimeira instância sem exame criminológico.

“Com o advento da Lei nº 14.843/24, a realização de exame criminológico que antes era facultativa e demandava justificativa no caso concreto passou a ser obrigatória. Em se tratando de norma processual, vige o princípio tempus regit actum, ou seja, aplica-se de imediato aos feitos em andamento”, concluiu o desembargador que votou pela derrubada da progressão de regime solicitada pelo preso.

Quanto ao alto custo do exame – uma questão levantada inclusive pelo ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski –, Christino afirma que isso não deveria influenciar as decisões dos magistrados, por não serem de cunho jurídico, mas administrativo. Para ele, caberia à administração pública prover os recursos, financeiros, materiais e de pessoal, para que a determinação seja cumprida.

O deputado Coronel Telhada (PP-SP) compartilha desse entendimento. O parlamentar afirma que milhões de reais são gastos em eventos, festas e financiamentos de artistas, sendo que nem todos trazem resultados positivos ou exemplos benéficos para a população. “Nesse sentido, avalio investir o dinheiro público para salvar vidas ou no mínimo trazer mais segurança e tranquilidade para a população”, afirma ele.

A deputada federal Silvia Waiãpi (PL-AP), também é partidária da obrigatoriedade do exame e o considera de suma importância para a segurança pública. Ela avalia que o Brasil é um dos países que mais se paga imposto no mundo e que é preciso que esses recursos sejam revertidos em benefício do povo, na sua segurança. “Não continuaremos colocando à sociedade em risco. Quem não quer ficar preso, que não cometa crime”, afirmou.

Garantismo penal está no cerne das interpretações antagônicas

No seio do antagonismo entre as diferentes interpretações está o “garantismo penal”, uma linha de entendimento criada pelo italiano Luigi Ferrajoli, que tem por base assegurar o cumprimento das regras do processo penal e, caso haja qualquer divergência, defende a anulação do processo.

Esse entendimento tem sido utilizado de forma mais ampla para justificar a não punição ou a aplicação de normas mais brandas sob qualquer pretexto, explica o jurista Fabricio Rebelo. Ele destaca que o “garantismo” permeia os princípios penais no Brasil, como demonstram as decisões que negam a aplicação do exame, mesmo após a promulgação de nova lei.

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