Pela primeira vez na história da diplomacia brasileira, umpresidente é declarado persona non grata por outro país. A façanha é deLuiz Inácio Lula da Silva, que recebeu o rechaço de Israel ao comparar, nodomingo (18), a resposta militar do país a um ataque terrorista à Solução Finalde Adolf Hitler contra os próprios judeus. O grupo terrorista Hamas, autor doataque de 7 de outubro do ano passado, agradeceu a Lula pela comparação.
A situação “é ainda mais grave pelo fato de o Estado emquestão ser um aliado com quem o Brasil sempre manteve boas relações, apesar decrises ocasionais”, informa Igor Sabino, doutor em ciência política pelaUniversidade Federal de Pernambuco e gerente de conteúdo da organização decombate ao antissemitismo StandWithUs no Brasil.
A declaração de uma pessoa como non grata (nãobem-vinda) é um instrumento previsto pelo artigo 9 da Convenção de Viena sobre asrelações diplomáticas, com o efeito de remoção da pessoa do território do paísque a rejeita, ou um aviso para que nem tente entrar. A reação do governo Lulafoi de escalada, convocando o embaixador Frederico Meyer de volta ao Brasil.
Precedentes no Brasil são quase todos da esquerda
Não houve um momento pior que este para a relaçãoBrasil-Israel. Entre os precedentes históricos, ao menos dois foramprotagonizados por governos do Partido dos Trabalhadores. O último ocorreu em2014, quando o governo de Dilma Rousseff acusou Israel de agir de mododesproporcional em outro contexto de guerra contra o Hamas. Na época, oembaixador brasileiro também foi convocado e Israel chamou o Brasil de “anãodiplomático” e “politicamente irrelevante”, mas pediu desculpas meses depois.
“A situação atual é muito mais grave”, compara Sabino. “Ameu ver, sem precedentes na história das relações entre os dois países”. Paraele, a comparação de Lula configura uma relativização do Holocausto, planejadosistematicamente pelos nazistas para dar um fim a judeus, homossexuais, ciganos,deficientes e críticos do regime de Hitler. No ano passado, o presidente disseque se opunha a colegas de partido e de ideologia que são contra a existênciado Estado de Israel. “Hoje, vemos claramente que isso mudou, a política externafoi utilizada a fim de alcançar resultados internos”, analisa o especialista. Adeclaração “chega a ser mais dura que as de todos os países árabes e atéinimigos declarados de Israel”.
Outro precedente diplomático é do próprio presidente. Em 2009, um dos atuais financiadores do grupo terrorista, a teocracia do Irã, foi a favorecida por outra declaração incendiária de Lula, então em seu segundo mandato. “O que temos defendido há muito tempo é que o Irã tenha o direito de enriquecer urânio”, disse na época, em encontro com o ex-presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad em solo brasileiro. Lula reivindicou que o Irã fosse tratado como o Brasil, e alegou que a autocracia tinha interesses pacíficos em energia nuclear.
Na época, a visita do líder iraniano foi recebida com protestos de entidades ligadas à comunidade judaica, grupos religiosos, de defesa dosdireitos humanos, de homossexuais e outras organizações. Um dos motivos para osprotestos era que Ahmadinejad “defende o fim do Estado de Israel, nega oHolocausto e resiste à pressão internacional para que o Irã interrompa seuprograma de enriquecimento de urânio”, como colocou a BBC Brasil.
Lula se defendeu das críticas dizendo que nas semanasanteriores já havia recebido o ex-presidente de Israel, Shimon Peres, e opresidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas. “Queremos falar de paz”,declarou.
“Nada é mais feio que democratas traindo outros democratasem prol de quem nega o Holocausto”, reclamou no New York Times opremiado comentarista Thomas L. Friedman. No ano seguinte, uma carta doex-presidente americano Barack Obama para Lula na qual o primeiro pareciasimpático à ideia de fazer um acordo com o Irã vazou para a imprensabrasileira. A Casa Branca esclareceu para o site Politico que aindabuscava fazer sanções e que o Irã explicitava “um interesse em buscar uma armanuclear”, justificando as sanções que “os brasileiros e turcos certamenteentendem”.
A publicação especializada interpretou no vazamento da carta “um sinal de ressentimento” do governo Lula, porque “o que ele vê como seu triunfo diplomático foi rejeitado pelos Estados Unidos e outros dos grandes poderes tradicionais”.
Outro precedente: quando Jânio Quadros condecorou Che Guevara
Desde 1942, a prática do Brasil no palco internacional era de “alinhamento automático”, informa um livro publicado em 2007 pela Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), entidade pública vinculada ao Itamaraty. Nos sete meses incompletos de governo do presidente Jânio Quadros, em 1961, a obra vê inovações na política externa, por abandono da prática, mas lista entre “falhas de execução” a “desnecessária condecoração de Che Guevara”, líder comunista, na época ministro da Indústria de Cuba, que confessou em carta ao pai que gostava de matar. Ele recebeu a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, maior distinção brasileira dada a estrangeiros.
Na edição de 19 de agosto de 1961, o Jornal do Brasil noticiouque a visita de Ernesto Che Guevara “causou grande surpresa nos meiosdiplomáticos e militares e provocou reações negativas principalmente nosúltimos”. Três secretários das Forças Armadas ameaçaram imediatamente deixarseus cargos em protesto pela homenagem ao guerrilheiro argentino. Odescontentamento foi suficiente para um reforço nas medidas de segurança noMinistério da Guerra e no Palácio da Presidência, relatou o jornal.
Em 1975, a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul foi concedidapor Ernesto Geisel ao ditador comunista Nicolae Ceausescu, da Romênia. Ceausescue sua esposa foram condenados por assassinato em massa por militares do própriopaís e fuzilados em 1989.
Colaborou com a reportagem a doutora em sociologia Marize Schons.