Lula fala o que quer sem sofrer nenhuma consequência

Imaginem por dois minutos o que aconteceria neste país se um candidato à Presidência da República mandasse os militantes do seu partido “mapearem” as casas dos deputados federais, nas cidades onde moram, e em seguida fazerem manifestações públicas na frente de cada uma delas — para “tirar a tranquilidade” do parlamentar e de sua família. Seria como a explosão de uma bomba nuclear. O candidato que falasse uma coisa dessas se veria imediatamente indiciado como réu no inquérito perpétuo que o ministro Alexandre de Moraes comanda há três anos contra “atos antidemocráticos”. Onde já se viu ameaçar os representantes do povo e, pior ainda, suas famílias e o seu sagrado lar? Por muito menos, Moraes já mandou prender o caminhoneiro “Zé Trovão”, denunciado como um perigoso inimigo do Brasil — e olhem que ele só estava promovendo manifestações de rua num pacato dia 7 de setembro, sem incomodar ninguém. A delegada da Polícia Federal que trabalha como subordinada do ministro ia cair matando. O PT e a esquerda entrariam em transe imediato. Alguém iria chamar a ONU.

Acontece que quem fez a ameaça foi o ex-presidente Lula, num encontro com militantes da CUT — e aí, é claro, tudo o que aconteceu foi três vezes nada. O ministro Moraes não viu problema nenhum — na sua opinião, cercar a casa de deputado federal, quando o cerco é ordenado por Lula, é um ato perfeitamente democrático. O Tribunal Superior Eleitoral achou tudo perfeito. O Ministério Público não abriu a boca. O senador histérico que vive na porta do Supremo Tribunal Federal pedindo para o governo “explicar” em “três dias” as coisas mais extravagantes que se possa imaginar está quieto. A mídia, enfim, não achou nada de errado. É natural que seja assim. Desde que o ministro Edson Fachin anulou numa só canetada as quatro ações penais contra ele, incluindo a sua condenação pelos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro, em terceira e última instância e por nove juízes diferentes, Lula se considera acima da lei. Tem razão de se sentir desse jeito: ele está, de fato, dispensado de obedecer às leis brasileiras, já que as autoridades judiciárias não lhe aplicam nenhuma das regras legais em vigor no país. O STF fechou com a sua candidatura. A ira do ministro Moraes e seu tribunalzinho de inquisição é reservada exclusivamente para pessoas de “direita”. Os milionários angustiados com a sustentabilidade acham que ele vai salvar o Brasil.

Lula, neste seu último surto — quanto mais o Judiciário se curva a ele, mais surtos ele tem — disse que não adianta nada “gastar uma fortuna” levando gente para fazer manifestação em Brasília. Os deputados, segundo ele, não tomam conhecimento de nada que esteja acontecendo na rua — é preciso, assim, que sejam incomodados dentro de suas próprias casas, por grupos de até 50 “sindicalistas”, segundo os cálculos do ex-presidente. É curioso. Até agora, as manifestações do PT e seus serviçais em Brasília eram tidas como absolutamente espontâneas; nunca alguém admitiu que custassem um único centavo, e coitado de quem duvidasse disso. Lula, agora, está dizendo o contrário, mas e daí? Se ele pode ameaçar livremente os deputados, sem ser incomodado pela sagrada aliança que vigia os “atos antidemocráticos”, é óbvio que está podendo qualquer coisa. Vai, a cada momento, dobrar a aposta.

J.R. Guzzo

*J.R. Guzzo é jornalista. Começou sua carreira como repórter em 1961, na Última Hora de São Paulo, passou cinco anos depois para o Jornal da Tarde e foi um dos integrantes da equipe fundadora da revista Veja, em 1968. Foi correspondente em Paris e Nova York, cobriu a guerra do Vietnã e esteve na visita pioneira do presidente Richard Nixon à China, em 1972. Foi diretor de redação de Veja durante quinze anos, a partir de 1976, período em que a circulação da revista passou de 175.000 exemplares semanais para mais de 900.000. Nos últimos anos trabalhou como colunista em Veja e Exame.

Por J.R. Guzzo, publicado no jornal Gazeta do Povo em 07 abril de 2022

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