Lula não pode impedir que Putin seja preso no Brasil, avaliam especialistas

Embora Lula tenha dito neste sábado (9) que “não há por que” Putin ser preso no Brasil, caso venha ao país em novembro de 2024 para a cúpula do G20, o governo brasileiro pode ser responsabilizado internacionalmente se não cumprir o mandado de prisão vigente contra o presidente russo. Isso porque o Brasil é um dos signatários do Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional (TPI) em 1998, e, portanto, tem um compromisso internacional de cooperação com o órgão que investiga e julga crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Na visão de especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo, a fala de Lula foi mais retórica e marca seu posicionamento no conflito, já que na prática o presidente não tem competência legal de impedir uma prisão.

No mês de março, o TPI emitiu um mandado de prisão contra Vladimir Putin, como “suposto responsável” pela deportação ilegal de menores ucranianos e transporte deles da Ucrânia para a Rússia, um crime de guerra segundo o Estatuto de Roma. Desde então, o presidente russo não tem comparecido a eventos internacionais, como o encontro do Brics na África do Sul, no último mês, e a cúpula do G20, realizada neste fim de semana, em Nova Déli, capital da Índia. Como a Rússia não é signatária do acordo, ele não corre o risco de ser preso em seu próprio território.

Em entrevista ao canal indiano Firstpost, neste sábado, Lula disse que convidará o presidente russo para a reunião do grupo no Brasil, no próximo ano, e que não vê motivos para a sua prisão por aqui. “No Brasil a gente gosta de música, de Carnaval, de futebol, mas a gente gosta de paz e gosta de tratar as pessoas bem. Então, eu acho que o Putin pode vir tranquilamente para o Brasil. Eu posso dizer que se eu for presidente do Brasil, não há por que ele ser preso”, afirmou.

Em seu artigo 5º, a Constituição Brasileira determina que “o Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional”. Já no decreto 4.388/2002, o governo brasileiro afirma que o Estatuto de Roma será “executado e cumprido tão inteiramente como nele se contém”. Isso inclui o cumprimento do artigo 87 do tratado, segundo o qual “o Tribunal estará habilitado a dirigir pedidos de cooperação aos Estados Partes”. “Se, contrariamente ao disposto no presente Estatuto, um Estado Parte recusar um pedido de cooperação formulado pelo Tribunal, impedindo-o assim de exercer os seus poderes e funções nos termos do presente Estatuto, o Tribunal poderá elaborar um relatório e remeter a questão à Assembleia dos Estados Partes ou ao Conselho de Segurança, quando tiver sido este a submeter o fato ao Tribunal”, completa o texto.

Presidente não pode impedir prisão 

Na avaliação de Alexandre Pires, professor de Relações Internacionais do Ibmec SP, uma atitude de Lula no sentido de impedir a prisão de Putin representaria “uma ingerência dentro da Polícia Federal, que é quem cuida desse tipo de execução de cooperação com a corte penal internacional”. Ainda assim, ele prevê que seja possível o Executivo “ganhar tempo”, por meio de questionamentos formais da Advocacia Geral da União (AGU), Ministério da Justiça e da própria PF ao TPI sobre o mandado de prisão vigente contra o russo. “É possível que, nesse imbróglio, caso o presidente russo pouse no Brasil e haja um questionamento, até obter uma resposta da corte, ele já tenha embarcado de volta sem que necessariamente o Brasil tenha violado o acordo”, afirma.

Outra possibilidade, na avaliação de Pires, é que o Brasil seja demovido da ideia de recepcionar Putin por parceiros internacionais, como os EUA ou a União Europeia. “Isso para não criar precedentes, enfraquecendo ainda mais a corte internacional que já tem poucos meios de execução de suas decisões, especialmente com relação a crimes de guerra, que é onde o presidente russo se enquadra, inclusive envolvendo crianças”, afirma.

O jornalista e professor de Relações Internacionais do Ibmec, Carlo Cauti, concorda que Lula não pode impedir a prisão de Putin, que precisa ser aplicada pela justiça do país tão logo ele pouse em solo brasileiro. “Ao menos que assumamos que o Lula tem o controle sobre o Judiciário, aí é o quanto ele tem influência no STF”, diz.

Caso decida violar a determinação do TPI, no entanto, os especialistas ponderam que o Brasil não sofreria sanções ou expulsão imediata, mas passaria por um processo por quebra de acordo. “Chama-se responsabilidade internacional. O país que não respeita um tratado acaba ficando em mora com suas obrigações e pode ser cobrado pelos outros países. Pega mal para o Brasil, nunca aconteceu de um país signatário não respeitar os tratados internacionais, tanto que o Putin não foi para a África do Sul, que é um país signatário”, afirma.

Retórica 

O economista e empresário Igor Lucena, doutorando em Relações Internacionais na Universidade de Lisboa, vê a fala de Lula “muito mais como uma retórica pró-Russia do governo brasileiro” do que como uma resolução prática, uma vez que desrespeitar o acordo com o TPI “seria muito negativo” interna e externamente para o país.

“Colocaria em xeque acordos de livre comércio, como a negociação que o Brasil está fazendo com a União Europeia. Se o Brasil não aceita uma regra como essa, a probabilidade de desrespeitar acordos fica muito grande e isso colocaria a credibilidade em risco”, diz. Lucena exemplifica que a recente obtenção de imagens da suposta agressão sofrida por Alexandre de Moraes em Roma ocorreu por meio de um acordo internacional. Ou seja, a não cooperação do Brasil com o TPI implicaria em dificuldade de acesso a outros tipos de informações e apoios futuros.

Lucena reforça que não há como “relativizar” a invasão de um país a outro, como a Rússia fez com a Ucrânia. Nesse sentido, receber Putin não seria uma atitude pacífica, como defende Lula. “A relativização de conflitos internacionais estimula outros players a buscarem a militarização para resolver seus problemas”, diz.

Reação da oposição 

Políticos da oposição reagiram à fala de Lula, alegando que o presidente tem se afastado de princípios democráticos, para se alinhar a posturas autoritárias. O senador Sergio Moro (Podemos-PR) disse que as declarações do petista acerca de Putin mostram que “o Brasil de Lula está alinhado internacionalmente com as autocracias, não com as democracias ocidentais”. Já para o ex-deputado Deltan Dallagnol, no governo Lula, o Brasil é amigo de ditadores sanguinários.

O deputado federal Kim Kataguiri (União-SP) escreveu no X (antigo Twitter) que, com suas declarações, Lula desafia o Tribunal Penal Internacional e “dá um recado ao mundo democrático: o Brasil está ao lado dos autoritários que atentam contra o mundo livre”.

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