Moda sustentável do Acre ultrapassa fronteiras e chega à ONU, Paris e revista Vogue

Conheça a história de artesãos acreanos que se reúnem em torno de cooperativas para levar a arte conectada com a floresta amazônica para todo o Brasil e exterior.

Semente por semente, cada colar ou pulseira produzido com materiais da floresta pode levar horas – ou até dias – para ser concluído. O trabalho manual e cuidadoso, que remonta ao conhecimento e cultura ancestral dos povos indígenas, deixa a mensagem do quanto uma semente sozinha pode até acabar passando despercebida, mas ganha valor e destaque quando se junta a outras, mostrando uma variedade de cores que formam imagens e significados.

É com esse paralelo do quanto o coletivo tem mais peso que o individual que o artesanato no Acre, em plena Amazônia Legal brasileira, tem avançado e conquistado mais espaço e reconhecimento. Afinal, quem vê as peças em lojas, desfiles e exposições muitas vezes não se dá conta de que cada biojoia traz um pouquinho da história e gera renda com cuidado socioambiental para centenas de jovens e mulheres de comunidades e cooperativas.

É essa reflexão que inspira a artesã Raimunda Nonata, do povo Huni Kuin. Na loja Barí da Amazônia, na capital Rio Branco, que produz parte da peças, mas é também responsável pelas vendas feitas pela Associação das Produtoras de Artesanato das Mulheres Indígenas Kaxinawá de Tarauacá e Jordão (Apaminktaj), como roupas, tiaras, faixas para cabelo e colares feitas de algodão, colhido na aldeia. A pigmentação das cores é natural, feita com açafrão e mogno. As técnicas foram repassadas pelas ancestrais da Artesã.

“Cada desenho, para nós, tem seu significado. Antigamente, o povo Huni Kuin trabalhava com uma peça-tela. Aprendi com minha avó, que era tecelã, mestra nas artes, que ensinou para minha mãe, que passou para mim”, lembra. Ela conta que a associação foi fundada há 25 anos e que hoje conta com mais de 500 mulheres de diferentes aldeias, dos municípios de Tarauacá e Jordão, no interior do Acre.

“Nossa matéria-prima é o algodão. Nós fizemos o plantio, colhemos e produzimos as peças”, diz. A pigmentação das cores é natural, feita com açafrão e mogno. “A gente faz o processo da fiação até se transformar em uma linha para fazer a peça, mas também ainda usamos linhas industrializadas, como o barbante”, diz a artesã.

O artesanato é mais que fonte de renda para essas mulheres. É valorização da cultura e reforço da identidade ancestral. “Eu nasci e me criei dentro dessa arte. A gente vê arte em tudo e colocamos ela da melhor forma possível: nas pinturas corporais, na tecelagem, na cerâmica, nos cantos, no falar”, afirma.

“A vida é uma arte e o indígena é cultura, queremos preservar cada vez mais a nossa identidade, nossa língua materna, os cantos e histórias”

Raimunda Nonata, artesã do povo Huni Kuin

Com planejamento, a arte virou meio de vida. Com capacitação, novas oportunidades foram surgindo e Raimunda relembra a longa trajetória para esse acompanhamento de mais de duas décadas com o Sebrae no Acre. “A associação tinha feito um projeto em que o Sebrae nos apoiou em aplicar técnicas para melhorar o acabamento das peças e ganhar mercado. A partir daí, foi só crescendo e animando mais as mulheres”, conta a artesã, que em 2013 foi a única mulher acreana selecionada para participar da exposição Mulher Artesã Brasileira, na sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York. Ainda hoje ela é sempre convidada para rodas de conversa e inspira outras mulheres que buscam seguir o rumo do empreendedorismo feminino.

Caminhos que abrem novas oportunidades

Maria José de Menezes se dedica ao artesanato há 35 anos, com um trabalho que abrange biojoias, pinturas em camisetas, telas e quadros | Foto: Marcos Rocha

Um outro exemplo da presença das mulheres como líderes de pequenos negócios e que beneficiam outras comunidades por meio do artesanato é Maria José Menezes. Artesã há 35 anos, ao produzir as peças ela relembra o olhar da então menina curiosa e atenta, que se encantava em ver outras mulheres produzindo arte na comunidade do Seringal Flora, no município de Cruzeiro do Sul, onde nasceu. “Observando outras mulheres, com cinco anos eu já queria fazer crochê e depois comecei com a pintura”, diz.

Ainda jovem, crescendo na comunidade, conheceu o trabalho da Coopmave (Cooperativa de Artesãs Mulher Arte de Vencer). “Foi quando me envolvi com essas 20 artesãs. Agora estou mais voltada para a biojoia, mas sigo com a pintura”, conta. Além das biojoias, hoje ela também atua com pinturas em camisetas, telas, quadros e pratos, e vende todas suas peças na loja Cor Amazônia, também localizada no Mercado Velho, no centro histórico de Rio Branco.

Biojoias e pinturas entre as peças da loja Cor Amazônia | Foto: Marcos Rocha

Maria José explica que o processo da produção das peças ainda ocorre em meio à floresta. “Às vezes eu vou colher na floresta, mas quando eu estou sem tempo, as sementes chegam na minha mão pela nossa cooperativa, que começou a fazer o beneficiamento da semente. Eu trabalho com açaí, paxiubão, jarina e fibra de buriti. Sempre que vou eu mesma colher, é uma experiência muito boa, porque eu gosto da natureza. Muitas vezes as pessoas olham a peça pronta e não entendem o processo, mas não vendemos apenas a semente, o artesanato vende história. O artesão transforma as coisas. Quando ele vê uma peça ele já pensa em alguma coisa. A mente abre”, explica.

Ao olhar para as peças na pequena loja, ela destaca o quanto a atividade ajuda a gerar renda e é uma das formas de manter a floresta em pé. “Eu também passei por dificuldade e foi no artesanato que eu vi que dava para sobreviver. Hoje eu vivo somente da renda do artesanato, porque é sustentável, não agride a natureza. Você vai lá, caminha observando e junta a semente e transforma em uma peça bonita”, conta.

Maria José afirma que atualmente o artesanato ganhou uma nova visão do público. “Antes o artesão era visto como algo alternativo. Mas, hoje, é bem valorizado. Temos nossa carteira de artesão. O artesanato para mim representa tudo”, destaca a artesã e empreendedora, que também participa de eventos e feiras nacionais com apoio do Sebrae. “Sempre foi nosso parceiro, não é de agora. É um espaço de qualificação e de apoio, parceiro mesmo para os artesãos”, comenta.

Visibilidade como motor de impulsionamento

O artesanato acreano tem ganhado cada vez mais espaço em feiras, vitrines e no mercado nacional. Apenas num desses eventos, a 25ª Feira Nacional de Negócios de Artesanato (Fenearte), realizada no mês de julho em Olinda (PE), dez artesãos do Acre faturaram mais de R$ 320 mil, segundo os dados da Secretaria de Turismo e Empreendedorismo do Acre. É apenas uma parcela dos mais de 2 mil artesãos cadastrados no Acre, o quarto estado da Região Norte com mais profissionais registrados, atrás do Pará (9.287), Amazonas (8.276) e Tocantins (2.839).

Artesãos no Acre são, em maioria, mulheres, que levam sustento para suas casas a partir de suas artes | Foto: Marcos Rocha

Para Aldemar Maciel, responsável pelo projeto Artesanato no Sebrae Acre, o crescimento é fruto de um trabalho conjunto, que ganhou novo impulso com um programa chamado Programa Sebrae de Artesanato, ainda no final da década de 1990. “Nesse programa havia várias ações e os eixos estruturantes dessas ações eram baseadas em informação, que consiste em saber quem é o artesão, formação, para trabalhar capacitação e reduzir ao máximo as dificuldades no processo de produção, comercialização, gestão e mercado, para auxiliar a colocar o produto no mercado de forma qualificada”, lembra.

Nos últimos anos, o Sebrae notou uma necessidade de reestruturação do programa no Acre. “Fizemos um diagnóstico para identificar quais eram os gargalos e mapear a cadeia produtiva como um todo e entendê-la, como funciona, quais eram as principais dificuldades enquanto cadeia e, aí a partir disso, o Sebrae atuou junto com o governo e prefeitura. Desenvolvemos uma metodologia específica para capacitar os artesãos, baseado nos eixos de planejamento e modelagem de negócio, a parte de gestão financeira, gestão da produção e, por último, gestão da comercialização”, explicou Aldemar.

O gestor de projetos destacou, ainda, que o Sebrae deve retornar com o Projeto Comprador, que reúne empresários de outros estados que compram artesanato em escala e os artesãos. “Convidamos a vir ao Acre e ter um contato direto, um encontro de negócios com os empresários locais. Vamos retomar esse ano”, afirma.

Além disso, o Sebrae conta com ações na área de tecnologia e inovação, para entender a importância de posicionar o produto com logomarca, apresentação e embalagem, como o Sebraetec.

De acordo com Aldemar Maciel, os artesãos no Acre são, em maioria, mulheres, que, por meio da arte, levam sustento para suas casas, fator que transforma o artesanato como uma porta para inclusão.

“É uma porta para o empoderamento feminino, para a liberdade dessas mulheres que muitas vezes sofrem violência de vários lados. Esse trabalho favoreceu, inclusive, o crescimento e o fortalecimento da economia solidária”

Aldemar Maciel, responsável pelo projeto Artesanato no Sebrae Acre

Para Marcelo Messias, que está à frente da Secretaria de Turismo e Empreendedorismo do Acre (Sete), o setor é estratégico. “O artesanato acreano tem sido uma das grandes referências no país. O artesanato produzido no Acre vai além da produção de peças, é uma forma que as famílias encontram para garantir o seu sustento, além de contribuir significativamente para a economia regional e a preservação da nossa história. Para quem visita o estado, é comum escolher itens do artesanato como lembranças daqui. Já para nós, que somos do Acre, ter uma peça do artesanato acreano reafirma a nossa identidade e ajuda a contar a nossa história, os nossos costumes e tradições, e isso é sensacional”, destaca.

Refugo de marcenaria vira biojoias

Escultor e entalhador em madeira, Kleder Bezerra também trabalha com barro e, desde 2001, dedica-se à criação de biojoias | Foto: Marcos Rocha

Também percebendo valor no que muitos não notam, o artesão Kleder Bezerra, proprietário da marca Eko Joias, tem na madeira uma de suas matérias de base na produção das peças. O artesão produz anéis, colares, braceletes, materiais decorativos, como colares de parede e de mesa, mas são os brincos a sua marca registrada com matéria-prima 100% da floresta.

“Eu trabalho com sementes e madeira, que são provenientes de refugos de marcenarias, oficinas de madeira, ou até mesmo o que encontro na rua ou na beira do rio. Onde eu encontro uma madeira interessante, eu pego para usar na confecção das peças. Já as sementes chegam até mim por meio dos indígenas e ribeirinhos. Algumas pessoas coletam e, em Rio Branco, há um grupo que beneficia as sementes para que a gente possa trabalhá-las”, conta.

Para a produção de peças, Kleder usa sementes e madeira | Foto: Marcos Rocha

É na pequena oficina, no fundo do quintal de casa, que surgem as peças produzidas pelo artesão. Vivendo há mais de duas décadas dedicadas ao artesanato, Kleder produz biojoias aproveitando o conhecimento que adquiriu com outras atividades. “Eu sou escultor, entalhador em madeira e também trabalho com barro, mas foi só depois de um certo tempo, a partir de 2001, que comecei a canalizar tudo isso para as biojoias. Comecei fazendo esculturas em jarinas, depois misturei outros materiais e hoje trabalho com sementes, madeiras, pedras e metais”, destaca.

Para Kleder, com participação nas feiras e inserção em catálogos e projetos do Sebrae, a marca passou a ganhar outro destaque. “Naturalmente, com dedicação, as coisas começam a melhorar. Com esse apoio, nosso nome começou a aparecer no cenário nacional de uma forma mais acentuada, mais marcante”, destaca. Ele relembra também o apoio para estruturar e divulgar o seu ofício, com cursos de precificação, marketing e venda. “A questão do empreendedorismo, de uma forma geral, foi o Sebrae quem nos fomentou. Até hoje, o Sebrae é um grande parceiro que sempre auxilia em idas às feiras nacionais”, relembra.

Na Casa do Artesanato Acreano, Márcia Silvia de Lima é outro nome bastante conhecido e trabalha no ramo desde o final da década de 1980. Com apoio do Sebrae, suas vendas não se limitam ao espaço físico. Ele recebe encomendas de diferentes partes do país. “Meu segmento no artesanato são as biojoias, mas também trabalho com peças decorativas. Hoje elas são comercializadas na Casa do Artesanato Acreano e em feiras nacionais. Eu participo de todas as feiras do calendário anual e sempre consigo boas vendas”, destaca.

Biojoias são o carro-chefe do artesanato acreano | Foto: Marcos Rocha

Assim como outras mulheres, Márcia também usa a atividade para gerar renda para outras artesãs e produtoras. “Encontrei outras pessoas que tinham necessidade de trabalhar nesse segmento, então formamos a Associação Acreana Buriti da Amazônia, composta por 19 mulheres”, explica. Ela tem a expectativa que, através da arte e das sementes, outras mulheres possam conquistar o que hoje ela celebra. Foi com essa renda que ajudou a formar os dois filhos em curso superior, como Engenharia Agrônoma e Administração e, agora, a terceira filha está prestes a ingressar no curso de Medicina. “Eu sou pai e mãe, então, para mim, é o legado que eu vou deixar para os meus filhos.”

Ela celebra os espaços conquistados, como a alegria de quando, junto com outras mulheres, produziu uma alegoria inteira da Escola de Samba Beija-Flor, do Rio de Janeiro. Além disso, com apoio da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex Brasil) e do Sebrae, foi à Colômbia participar de um evento com oficinas, exposição e comercialização de peças de artesanato.

“Ao retornar, consegui no Brasil um contrato com uma empresa de uma grande lojista em São Paulo, chamada Flavia Aranha, e agora trabalho peças para desfiles de moda, desde cinto, top, colares e pulseiras. Com essa oportunidade, saímos na Revista Vogue e produzimos peças para um desfile com a primeira-dama da França, Brigitte Macron, e a primeira-dama do Brasil, Janja Lula. É um orgulho muito grande”, ressalta Márcia.

Márcia Silvia de Lima atua no artesanato desde 1989 e teve peças peças publicadas na Revista Vogue e expostas em desfile com a presença das primeiras-damas da França e Brasil | Foto: Marcos Rocha

Márcia reforça o orgulho que sente ao ver o próprio nome batizando as peças que produz em sites de venda reconhecidos. “É bolsa Márcia, colar Márcia, pulseira Márcia. Isso é muito gratificante”, conta.

Ao lembrar da trajetória como artesã, ela destacou que o apoio de instituições como Sebrae e governo estadual fortaleceu a participação de artesãos em grandes feiras e capacitações. “Quando o Sebrae nos encontrou e começou a nos apoiar, junto com o governo do Estado, formalizamos a associação com CNPJ”, ressalta.

“Durante uma exposição em Rio Branco, uma funcionária do Sebrae me convidou para conhecer. Depois disso, juntamos as mãos e nunca mais largamos. As oficinas foram muito importantes, porque antes a gente só confeccionava e vendia, mas fizemos cursos, oficinas e recebemos orientações sobre preços e como se comportar com o cliente. Tudo está avançando, então a gente precisa acompanhar”, continuou.

A coordenadora do Artesanato Acreano da Sete, Risoleta Queiroz, reforça que as biojoias são o carro-chefe do artesanato acreano e que o empenho desses artesãos tem sido cada vez mais valorizado, pelo diferencial de unir identidade, trabalho em conjunto com comunidades e cooperativas e respeito à floresta. “Os acreanos sempre estão no topo do ranking de vendas e nossos produtos são sempre muito bem-procurados. Todos os meses os artesãos superam as expectativas de vendas, movimentando a economia local. Nossos artesãos têm cuidados com as sementes e as madeiras, e é por isso que nossas peças são muito bem-vistas. É o diferencial do artesanato acreano”, afirma.

*Conteúdo produzido em parceria com o portal Amazônia Vox. Revisão e edição de Luciene Kaxinawá e Daniel Nardin.

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