Invasões de terras por movimentos sociais e indígenas, com objetivo de forçar e acelerar a tramitação de processos nos órgãos públicos que demarquem terras, continuam trazendo riscos de vida e à integridade de pessoas, além de uma insegurança jurídica sem precedentes.
O estado de Mato Grosso do Sul, há muitos anos, é palco de vários episódios de conflitos de terras, incitados por movimentos, entidades e outros personagens, situações que já foram até mesmo investigados pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Funai no Congresso em 2016 e CPI do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) na Câmara dos Deputados do Mato Grosso do Sul também em 2016.
Além disso, a incitação dos conflitos também tem como origem as políticas de transição de governos, entendimentos judiciais e discussões legislativas, como no caso do marco temporal de demarcação de terras indígenas, originariamente discutido no julgamento do Raposo Serra do Sul em 2009, rediscutido em outro processo de Santa Catarina entre 2019 e 2023, legislado pelo Congresso na sequência, para manter o primeiro entendimento.
Os conflitos se estendem a 146 propriedades rurais invadidas em todo o estado, aguardando por um desfecho seja pela reintegração de posse, seja pela indenização e demarcação das terras declaradas indígenas, conflitos centralizados em Douradina, Amambai, Caarapó e Laguna Carapã.
Fazer justiça com as próprias mãos e exercer a autotutela primitiva na tomada de terras são situações atualmente injustificáveis e constituem crimes tipificados pela legislação penal. Esses atos estimulam uma cultura de impunidade e não devem ser negociados, para evitar que invasores sejam premiados por suas atitudes, independentemente de eventuais injustiças, que devem ser apuradas nos devidos processos.
Invasões feitas com objetivo de agilizar processos de demarcação ou desapropriação são atos ilegais e crimes (artigos 161, §1º, inciso II e 202 do Código Penal), pois somente o Poder Público, através de procedimentos próprios, pode determinar a perda da propriedade.
Não vivemos mais em tempos medievais de disputas por terras com uso da própria força, a romantização de invasões mudando o nome para “ocupação” ou “retomada” é algo extremamente perigoso, sobretudo por colocar vidas em risco.
Qualquer procedimento expropriatório (demarcação de terras indígenas e reforma agrária), segue procedimentos civilizados e orientados por lei, cabe somente ao Estado, através destes procedimentos, verificar tecnicamente se um local é produtivo (graus de eficiência e utilização) ou se um local já foi historicamente ocupado por outros povos (laudo antropológico), permitindo aos envolvidos o exercício de seus direitos de defesa, antes de desapropriar terras, cabendo indenização prévia em alguns casos.
O Supremo Tribunal Federal está realizando audiências de conciliação por convocação do Gilmar Mendes, relator das ações protocoladas por partidos políticos para manter a validade da lei do marco temporal, por sua vez, inspirada em entendimento do próprio Supremo Tribunal Federal, quando julgou o caso Raposo Serra do Sul em 19/3/2009, estabelecendo esta tese temporal.
O Ministro Gilmar Mendes negou pedido suspensão da nova legislação do marco temporal e criou comissão com do Congresso, entidades que atuam na proteção dos indígenas terão na comissão, incluindo povos indígenas, Governo Federal através da Advocacia-Geral da União (AGU), ministérios da Justiça e Segurança Pública e dos Povos Indígenas, Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Fórum de Governadores, Colégio Nacional de Procuradores de Estado, Confederação Nacional dos Municípios (CNM) e Frente Nacional dos Prefeitos (FNP).
E assim, discutiram a indenização de produtores que terão as terras demarcadas, em casos em que não deram causa à uma posse em áreas que já tenham sido terras indígenas, áreas em que o esbulho tenha sido originado por outro contexto histórico, reconhecendo que o Estado praticou um ato ilícito de dar títulos de terra, anulando estes títulos e pagando indenizações.
A chamada Lei do Marco Temporal (Lei Federal nº 14.701/2023), inovou ao regulamentar o artigo 231, §6º da Constituição com relação ao direito de indenização pelas benfeitorias de boa-fé realizadas nos imóveis demarcados, ajudando a resolver controvérsias que já existem em casos analisados por tribunais neste sentido, simplificando o que antes era determinado que fosse solicitado em outro processo.
Com as regras atuais, deve existir indenização logo “após a comprovação e a avaliação realizada em vistoria do órgão federal competente” e a grande novidade proposta pela legislação foi favorecer proprietários de “justo título de propriedade ou de posse”, cabendo indenização mais abrangente pelo imóvel rural em razão de “erro do Estado”.
Todavia, o direito de propriedade não se negocia, pois são muitos os fundamentos jurídicos para sua validação, inclusive a legítima defesa de posse. O Governo está obrigado a garantir a todos os brasileiros a inviolabilidade do direito à segurança pessoal e à propriedade particular, onde a propriedade é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela pode entrar sem consentimento (artigo 5º, caput, incisos XI e XXII, da Constituição Federal), segurança pública é dever do Estado e responsabilidade de todos (art. 144 da CF), exercida pelos órgãos competentes.
Ao relativizar o direito de propriedade ou negociar o cumprimento de reintegrações de posse, permitindo que ordens judiciais sejam rasgadas em frente aos serventuários designados para cumprimento, colocamos em risco uma das estruturas constitucionais mais basilares de toda a sociedade, o direito à propriedade privada, conquista histórica dos direitos humanos.
Aliás, vale pensar no real sentido da definição de “terras indígenas tradicionalmente ocupadas”, de acordo com o artigo 231, §1º da Constituição Federal, determinando que são aquelas que devem ser utilizadas para “reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”, o que reforça a argumentação de que terras indígenas demarcadas em áreas urbanas ou agropecuárias, tecnicamente não são e nem serão mais terras indígenas.
A mesma ideia foi reforçada pelo artigo 4º da nova lei do marco temporal, que, em seus incisos, descreve como sendo terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas aquelas que simultaneamente sejam: “habitadas por eles em caráter permanente; utilizadas para suas atividades produtivas; imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar; necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.
Por isso, embora seja sempre de boa intenção uma solução amistosa por meio de acordos consensuais, não se retirando o mérito da pacificação desta situação, ainda assim deve-se pensar no esvaziamento do texto da legislação ao entregar áreas agricultadas ou até mesmo urbanas para indígenas com intuito de demarcar como terra “tradicional” para que exercitem “usos e costumes”, sobre culturas agrícolas que sequer fazem parte de seus costumes ou etnias, chancelando também uma espécie de desapropriação indireta.
Por estas razões, é imprescindível repensar a legislação e a políticas pública indigenista, em favor da legitimidade e transparência nos processos, assim como também em favor do planejamento territorial de todo o país, que necessita ser visto com eficiência em benefício de todos os brasileiros.