A recente edição, no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), de uma resolução que aplica, nas eleições municipais deste ano, propostas ainda não aprovadas pelo Congresso no “PL da Censura” – e que ampliam a censura nas redes sociais – deu impulso, no Senado, à tramitação do novo Código Eleitoral. Se aprovado, ele praticamente dizimará o atual poder do TSE de legislar sobre regras eleitorais – por exemplo, em relação ao que pode e o que não pode ser dito na internet na época de campanha.
Nesta quinta-feira (29), o senador Marcelo Castro (MDB-PI) anunciou que divulgará seu relatório sobre o novo Código Eleitoral em breve, para votar o texto no Senado até junho. Como houve alterações na versão aprovada pela Câmara em 2021, o projeto ainda voltará para análise dos deputados federais. O objetivo, de qualquer modo, é que as novas regras, inseridas no novo Código Eleitoral, valham para as eleições de 2026.
Uma das grandes inovações do texto está na limitação da função regulamentar do TSE. O projeto de lei diz que “o Tribunal Superior Eleitoral poderá expedir regulamentos para a fiel execução desta Lei, com o objetivo de uniformizar os serviços eleitorais e os procedimentos necessários à disciplina, à organização e à realização das eleições e das consultas populares, observados os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança”.
Em outras palavras, caberá ao TSE somente criar normas relativas à organização das eleições, como, por exemplo, o alistamento de eleitores, procedimentos para registro de candidatos, operacionalização da votação, apuração, totalização, fiscalização dos sistemas eletrônicos. Sua atuação normativa ainda valeria para questões relacionadas aos locais de votação, voto em trânsito e no exterior, nos presídios ou em situações de calamidades públicas, por exemplo.
Caso o TSE ultrapasse esses limites, o Congresso estará apto a aprovar um decreto legislativo para sustar a resolução do tribunal de forma imediata. “O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) não poderá editar regulamentos em contrariedade com a Constituição Federal e com esta Lei, tampouco restringir direitos ou estabelecer sanções distintas daquelas previstas em lei”, diz ainda o projeto de lei do novo código eleitoral.
Estudiosa do tema, a advogada Clarissa Maia, que é doutora em direito constitucional e professora da Universidade Estadual do Piauí (UEPI), entende que o novo Código Eleitoral deixará ainda mais claro um poder que o Congresso já tem, pelo texto da Constituição, de “zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes”.
“O que o novo Código Eleitoral propõe é a garantia do princípio da legalidade estrita na regulação da democracia, que são as regras eleitorais”, diz a professora. “Quando as resoluções são ativistas e criam pontos que a legislação não trabalha, são bastante problemáticas, porque não só ferem o princípio da separação dos poderes, mas a própria Constituição, no princípio da anualidade”, diz, referindo-se à regra constitucional que não permite mudança das regras eleitorais a menos de um ano do pleito.
O TSE tem até março do ano eleitoral para aprovar suas resoluções, mas ao criar regras não previstas na legislação, descumpre esse preceito.
Para Clarissa Maia, o TSE tem poder de regulamentar questões relacionadas à logística das eleições – como organização do transporte dos eleitores, o estabelecimento das zonas, distribuição das urnas, tecnologia do sistema de votação, por exemplo –, como estabelece o novo código. Segundo ela, isso diz respeito à função executiva do TSE de realizar as eleições.
Mas o novo Código Eleitoral, além de limitar o TSE a esse campo, ainda deixaria pouca margem para inovação nas regras sobre propaganda, gastos e cotas, por exemplo. Isso porque o texto do projeto, com 898 artigos, organizados em 391 páginas, detalha bastante o que poderá e o que não poderá ser feito nas campanhas, inclusive na propaganda pela internet.
Novo Código Eleitoral segue Marco Civil da Internet e não PL da Censura
Uma das grandes diferenças do novo Código Eleitoral em relação à recente resolução do TSE é o respeito ao que preceitua o Marco Civil da Internet, lei aprovada em 2014.
Nos artigos relacionados à remoção de conteúdo, o texto sempre diz que decisões do tipo devem ser tomadas pela Justiça Eleitoral, com direito à ampla defesa e contraditório dos autores das postagens, vídeos e textos objeto de questionamento.
“A atuação da Justiça Eleitoral em relação a conteúdos divulgados na internet deve ser realizada com a menor interferência possível no debate democrático”, diz um dos artigos da proposta de Código Eleitoral.
O dispositivo estabelece ainda que, “com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, as ordens judiciais de remoção de conteúdo divulgado na internet serão limitadas às hipóteses em que, mediante decisão fundamentada, sejam constatadas violações às regras eleitorais ou ofensas a direitos de pessoas que participam do processo eleitoral”.
A atual resolução do TSE inovou ao incorporar propostas do PL da Censura (projeto de lei 2630/2020, também chamado de PL das Fake News), para obrigar as redes sociais a fiscalizarem de forma mais rigorosa o que trafega em suas plataformas e retirar do ar tudo que o TSE considerar, de antemão, como “desinformação”: “fatos notoriamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que atinjam a integridade do processo eleitoral”. Essa definição, apesar de vaga, acaba sendo esclarecida pela própria Corte no julgamento de casos concretos.
Agora, as empresas de tecnologia terão à disposição um “repositório” de decisões do TSE, para que possam consultar tudo o que os ministros consideram falso. A partir disso, deverão remover, por iniciativa própria, tudo que for semelhante, sob risco de serem responsabilizadas com multas.
Segundo a ministra Cármen Lúcia, as plataformas devem agir assim em cumprimento ao “dever de cuidado” – conceito extraído do próprio PL da Censura – e também à “função social” da propriedade – princípio da Constituição que ela decidiu aplicar às mídias sociais.
A resolução do TSE para as eleições de 2024 prevê responsabilização das redes sociais que não bloquearem de forma imediata conteúdos e contas que divulguem “condutas, informações e atos antidemocráticos tipificados no Código Penal” e também “comportamento ou discurso de ódio, inclusive promoção de racismo, homofobia, ideologias nazistas, fascistas ou odiosas contra uma pessoa ou grupo mediante preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
O novo Código Eleitoral, por sua vez, prevê que conteúdos ilícitos ou suspeitos só poderão ser retirados após decisão judicial. A responsabilização só ocorrerá se houver descumprimento de uma ordem de retirada.
“O provedor de aplicação de internet que possibilite a campanha de anúncios ou o impulsionamento pago de conteúdos deverá contar com canal de comunicação com seus usuários e será responsabilizado por danos decorrentes do conteúdo impulsionado se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente pela Justiça Eleitoral”, diz o texto.
Proposta em análise criminaliza “desinformação deliberada”
Além disso, o novo Código Eleitoral é mais contido no que se refere a conteúdos proibidos na campanha. Diz que que é proibida, nos três meses que antecedem as eleições, “a disseminação de fatos sabidamente inverídicos para impedir, causar embaraços ou desestimular o exercício do voto ou deslegitimar o processo eleitoral ou que causem atentado grave à igualdade de condições entre candidatos no pleito”. O candidato que cometer esse ilícito estará sujeito à cassação do mandato e inelegibilidade, além de multa de R$ 30 mil a R$ 100 mil.
O texto, no entanto, dá uma proteção para o eleitor, ao dizer que “a manifestação espontânea na internet de pessoas naturais em matéria político-eleitoral, mesmo que elogiosa ou crítica a candidato ou a partido político, não será considerada propaganda eleitoral”.
Por outro lado, o novo Código Eleitoral criminaliza desinformação deliberada. Diz que será punido com 1 a 4 anos de reclusão quem “divulgar ou compartilhar, no âmbito da propaganda eleitoral, a partir do início do prazo para a realização das convenções partidárias, fatos sabidamente inverídicos para causar atentado grave à igualdade de condições entre candidatos no pleito ou embaraço, desestímulo ao exercício do voto e deslegitimação do processo eleitoral”. A regra vale tanto para mentiras sobre as urnas eletrônicas, quanto em relação a candidatos.