O desconhecido Plácido de Castro | Por Lauro Fontes

O Herói Que Tentou Civilizar O Acre Pelo Trabalho

Poucos episódios da história acreana revelam, com tanta clareza, a complexidade entre heroísmo e abandono quanto a segunda vida de Plácido de Castro, aquela posterior à vitória na Revolução Acreana, já longe dos clarões da batalha. Seu retorno silencioso ao seringal Capatará, após oito dias de ausência, despertou entre os trabalhadores apenas a sensação de que algo se agitava por dentro daquele homem disciplinado. Não sabiam o quê. Suspeitava-se de uma viagem à Bolívia, mas o motivo permanecia envolto em mistério. O que ninguém imaginava é que, desta vez, Plácido preparava uma revolução de outra natureza: não a das armas, mas a do trabalho planejado sobre a selva.

Logo a floresta voltou a pulsar. Machados abriram varadouros, trilhas foram reforçadas, pontes e aceiros ganharam forma sob sua supervisão meticulosa. O objetivo, só compreendido mais tarde, era ousado e simples ao mesmo tempo: criar um corredor seguro de circulação de gado e muares entre o Acre e as planícies bolivianas. Queria introduzir na região carne fresca, leite, manteiga, produtos até então inexistentes no cotidiano local. Representava não só um avanço logístico, mas um gesto civilizatório: romper o isolamento econômico, integrar fronteiras e pensar o Acre como parte viva de um organismo regional mais amplo.

Os efeitos vieram depressa. O preço do boi despencou de um conto de réis para quatrocentos mil; o do muar, de novecentos para trezentos mil. A economia local respirava um ar novo, o da prosperidade possível.

O Capatará, antes simples posto extrativista, transformou-se em estância-modelo. Plácido incorporou métodos científicos e tecnologia agrícola inédita na Amazônia: arados, máquinas, instrumentos modernos. Criou um campo experimental para testar produtividade. Onde antes predominava o improviso, surgia a racionalidade industrial. E, como símbolo máximo dessa modernização, instalou até uma rede telefônica interna, conectando a sede aos seringais distantes, um feito raro mesmo para os padrões do sul do país.

O destino parecia conspirar a seu favor. O amigo Basílio Gomes de Lira, proprietário do seringal Bagaço, desejando regressar ao Ceará, ofereceu a propriedade por cem contos de réis. Plácido não hesitou. Comprou o seringal e consolidou-se como empresário de envergadura. O guerreiro cedera lugar ao homem de negócios, sem abandonar a sobriedade moral que o caracterizava.

Com a alta vertiginosa da borracha no mercado internacional, sua fortuna cresceu rapidamente. Controlava Capatará, Bagaço, Tambaqui, Montevidéu, Abunã e Rapirrã. Mas surgia então o paradoxo que marcaria sua trajetória: a maioria de suas terras estava em território boliviano, onde os impostos eram de 12%, enquanto no Brasil chegavam a 25%. Assim, o homem que lutara pela libertação do Acre via-se obrigado a prosperar sob leis estrangeiras. Não por deslealdade, mas por coerência econômica, e por falta de alternativas.

Esse dilema revela a dimensão trágica de Plácido de Castro. O herói nacional tornara-se produtor da Bolívia porque o Estado brasileiro, que ele ajudara a expandir, mostrava-se incapaz de competir com os vizinhos. Em relatórios enviados ao Ministério da Indústria e Obras Públicas, denunciou abertamente o peso dos tributos, a exploração dos comerciantes de Manaus e Belém, dos aviadores, dos exportadores e, sobretudo, a indiferença da República. Chamava de “atentado às leis da República” a política tributária que esvaziava a economia da Amazônia.

Sua denúncia mais emblemática sintetiza a ironia cruel: “Todos estes atentados foram comentados na Câmara entre risotas. A providência tomada foi aumentar o imposto de 18% para 23%.”

A frase desmonta, com precisão cirúrgica, o mito de uma República comprometida com seus próprios heróis. A pátria que ele ajudara a defender com sangue respondia com descaso. E, no silêncio da selva, entre seringais, máquinas agrícolas e fios telefônicos, Plácido percebia que a revolução que imaginara concluir ainda estava em curso, apenas mudara de forma. O inimigo já não era o estrangeiro armado, mas o compatriota munido de impostos.

O Acre, mais uma vez, revelava sua vocação de espelho do Brasil: terra de bravura, de promessas, e de esquecimentos.

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