Toda nação se ergue sobre uma história contada, e recontada, até que pareça verdade. O Acre não fugiu a essa sina.
A história oficial o descreve como fruto de uma epopéia libertadora, conduzida por heróis de bravura singular: Gálvez, o visionário; Plácido, o estrategista. Ambos, símbolos da coragem de um povo que, supostamente, despertou do domínio estrangeiro para fundar sua própria terra livre.
Mas essa é apenas a narrativa da luz, aquela que as elites escolheram acender. Há também a história da sombra, que pulsa nas margens dos rios, nas barrancas do Purus, Acre, Juruá, e nas vozes caladas dos seringais.
Quando a diplomacia imperial e republicana buscava consolidar as fronteiras amazônicas, o Acre já fervilhava de gente anônima.
Nordestinos famintos fugiam da seca para o cativeiro da borracha. Mulheres eram deixadas nos barracões, sem nome na história. E os nossos índios, os verdadeiros donos da terra, foram silenciados à força, deslocados, apagados.
O mito fundador nasceu nesse cenário de exploração e silêncio. Serviu para dar rosto heroico ao poder econômico, mascarando as relações de dominação e transformando uma disputa por riqueza em epopeia nacional. Era preciso criar heróis, porque o poder não se legitima apenas pela força, ele precisa de uma história que pareça justa.
Do outro lado do rio, Riberalta assistia à gestação desse mito. Ali estavam os bolivianos, os comerciantes, os homens de negócios que também disputavam o destino da floresta. Riberalta foi a testemunha esquecida: o espelho em que o Acre poderia se ver, mas preferiu não olhar.
Enquanto no lado brasileiro se erguiam bandeiras e discursos de liberdade, do lado boliviano fervilhavam as transações políticas e econômicas que de fato decidiriam o futuro do território. A “revolução” que o mito glorificou era, em parte, uma guerra de interesses, e Riberalta conhecia o enredo, por dentro.
É por isso que, quando dissemos que “Riberalta necessita de luz”, estamos dizendo que a outra metade da verdade precisa ser dita. Sem ela, o Acre permanece refém de uma ficção patriótica que o impede de compreender sua própria origem.
Todo mito fundador cumpre uma função: legitimar o poder. Ao transformar Gálvez em visionário e Plácido em libertador, o Estado brasileiro consolidou o domínio sobre o território e silenciou as vozes que poderiam contestá-lo. O mito, nesse sentido, não mente abertamente, ele seleciona a verdade. E o que é excluído da história torna-se invisível, mas não inexistente.
O Acre, desde então, vive entre a memória e o esquecimento. Repete, ano após ano, as mesmas palavras, as mesmas datas, as mesmas estátuas, como se ainda precisasse justificar sua existência. Mas o verdadeiro nascimento de um povo ocorre quando ele tem coragem de olhar o seu passado sem adornos.
Riberalta, o espelho esquecido, pede luz não por vaidade, mas por justiça histórica. O mito fundador precisa ser revisitado, não destruído, mas ressignificado. Afinal, verdadeira grandeza do Acre não está apenas na bravura de seus heróis, mas na resistência silenciosa de seus invisíveis: seringueiros, índios, mulheres, exilados, migrantes. Eles são os fundadores esquecidos, e é a eles que a história deve ser devolvida.
Quando essa luz alcançar Riberalta, o Acre deixará de ser apenas uma lenda contada por vencedores, e se tornará, enfim, uma história humana, feita de lutas, dores e esperanças compartilhadas.
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Escritor, professor, pesquisador e especialista em Gestão Pública, com mestrados em Sociologia, Ciência Política e Direito. Articulista político, Lauro Fontes escreve sobre história e política às segundas, quartas e sextas-feiras no Diário do Acre.



