Ortopatia: Afeições ordenadas pela mensagem

Os eventos históricos interpretados à luz da redenção são a doutrina no sentido cristão. Além disso, considerando que a teologia da igreja derivou da adoração da igreja, como devemos reagir diante da beleza de Deus? Ora, quando o homem lida com a realidade que o circunda, ele é capaz de exprimir as mais diversas reações, diante do conteúdo daquela substância disposta diante de si. De fato, as coisas mais elevadas são dignas das mais elevadas afeições, que lhe correspondam, ao passo que coisas fúteis e banais devem ser assim consideradas: a elas devemos nos desafeiçoar. Ocorre que, assim como acontece com o assentimento da verdade, nossas opiniões nem sempre correspondem à verdade até que ordenemos adequadamente nossas opiniões àquilo que correspondem à realidade. Semelhantemente, nossas reações às coisas mais elevadas precisam corresponder às dignidades que elas evocam. Tão importante quanto conhecer a verdade que devemos crer; e praticar a verdade que devemos obedecer, temos de amar o que é belo; temos de amar a beleza da verdade de maneira correspondente à sua natureza e dignidade. O padrão pelo qual devemos julgar os sentimentos correspondentes ao objeto, está fora do inquiridor, cabendo-lhe tão somente a adequação ao modelo exterior. Foi neste sentido que em sua epístola aos Colossenses o apóstolo São Paulo ordenou aos discípulos, escrevendo-lhes: “Portanto, se  ressuscitastes com Cristo, buscai as coisas que são de cima, onde Cristo está assentado à destra de Deus. Pensai nas coisas que são de cima, e não nas que são da terra; porque  estais mortos, e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus. Quando Cristo, que é a nossa vida, se manifestar, então também vós vos manifestareis com ele em glória. Mortificai, pois, os vossos membros, que estão sobre a terra: a fornicação, a impureza, a afeição desordenada, a vil concupiscência, e a avareza, que é idolatria; pelas quais coisas vem a ira de Deus sobre os filhos da desobediência; nas quais, também, em outro tempo andastes, quando vivíeis nelas” (Colossenses 3:1-7). 

Nutrirmos um sentimento correto em relação à Pessoa de Deus é outra parte essencial para tantos quantos anseiam que o cristianismo seja conservado puro às futuras gerações; tais afeições refletem diretamente na adoração pública e particular de cada cristão, afinal, é da adoração que deriva a fides quæ creditur (fé que se crê). Conjuntamente com o reconhecimento da importância que se dá à doutrina correta e à adoração correta, é essencial aos cristãos nutrir um sentimento correto quanto a Deus, que é o objeto e o centro da verdadeira adoração. Uma vez que nós queremos que as próximas gerações de cristãos tanto conheçam a doutrina correta quanto tenham uma vida piedosa correta, precisamos compreender desde já a importância de conservamos modelos que promovam e auxiliem no ordenamento das nossas afeições ante à beleza da verdade; apenas assim seremos capazes de refletir sentimentos corretos quanto a Deus sem corrermos o risco de desonrá-lo, como está escrito: “E o mesmo Deus de paz vos santifique em tudo; e todo o vosso espírito, e alma, e corpo, sejam plenamente conservados irrepreensíveis para a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo” (I Tessalonicenses 5:23). 

A terceira das “três ortos” é chamada de Ortopatia. O termo vem de dois vocábulos gregos: ὀρθός (gr. orthos), “correto”; e πάθος (gr. páthos), “afeição, sofrimento, sentimento”. Ao cristão que quer conservar o cristianismo puro, é importante que ele seja capaz de expressar adequadamente o valor correspondente às dignidades da beleza que está diante de si, enquanto reflexo derivado da Luz de Deus; assim como a lua reflete a luz do sol, não tento ela mesma luz própria, assim também, a beleza de Deus é refletida em sua criação. Assim como precisamos ordenar aquilo que cremos ao que é verdadeiro e aquilo que fazemos ao que é bom, semelhantemente as nossas afeições devem corresponder àquilo que é belo e reflexo da Luz de Deus. 

É comum aos cristãos modernos não se preocuparem com quais tipos de sentimentos eles devem ter ou nutrir com relação a Deus e todas as coisas relacionadas a Ele e Sua adoração, uma vez que o modelo levado em consideração é o próprio indivíduo, que passa a medir a realidade universal à luz da própria ignorância, de maneira que, aquilo que seus sentidos não abarcam, logo – assume o pobre indivíduo – inexiste. Acredita que basta ser sincero diante de Deus e será aceito, quando, na verdade, existem modelos exteriores que refletem esta beleza objetiva de Deus, o que lhe agrada quando reconhecida e reproduzida pelo homem.  Diferente do que talvez se imagina, precisamos moldar os nossos sentimentos e afeições de acordo com a beleza de Deus, refletida em todo o universo; estes reflexos podem ser garimpados nas várias artes, quer seja por meio da Música, da Poesia, da Literatura ou da Arquitetura; o fato é que a adoração a Deus deve ser dada de maneira bela, de maneira correspondente às dignidades de Deus: “Dai ao SENHOR a glória devida ao seu nome, adorai o SENHOR na beleza da santidade” (Salmos 29:2); “O teu povo será mui voluntário no dia do teu poder; nos ornamentos de santidade, desde a madre da alva, tu tens o orvalho da tua mocidade” (Salmos 110:3); “Tributai ao SENHOR a glória de seu nome; trazei presentes, e vinde perante ele; adorai ao SENHOR na beleza da sua santidade” (I Crônicas 16:29).

A ideia de “emoções” é consideravelmente nova quando comparamos o modo como os homens abordavam a questão até bem poucos séculos atrás. Segundo o entendimento grego e romano, desde os cristãos primitivos até ao século XVIII, apenas existia a compreensão de “afeições” e “paixões”, que consistiam em reações e reflexos internos por evocação da realidade externa, por cujo motivo era essencial expor-se o máximo possível àquilo que fosse elevado, ao passo que todas as afeições desordenadas, concupiscências e paixões carnais deveriam ser mortificadas, uma vez que o tipo de objeto determinaria o tipo de desejo. As paixões eram impulsivas e de difícil domínio, ao passo que aquilo que é santo evoca sentimentos santos e elevados, auxiliados pela graça Divina, isto é, pertencente ao governo divino. Mas foi à partir do iluminismo que a cosmovisão secular trouxe à luz a ideia moderna das “emoções”, corrompendo a compreensão até então estabelecida e assentando em seu lugar a ideia subjetiva e relativista de “emoções”, que seriam meras agitações psicológicas e animalescas diante de uma realidade que não possui qualquer sentido objetivo, promovendo a amputação de qualquer noção da beleza como uma verdade metafísica cognoscível e incentivando a busca pelo máximo de prazer e o mínimo de sofrer, afinal, “a beleza está nos olhos de quem vê”, já dizia o mantra pós-moderno. Com isso, a beleza é rebaixada à estatura de sinônimo de prazer imediato, provocando o exato oposto do que São Paulo, o apóstolo, ensinou aos colossenses: promoção de “afeições desordenadas”. Uma vez mais Epicuro teima em ludibriar os desavisados e o poste-ídolo do Cæsar redivivus é novamente edificado no meio da cristandade, não bastasse as muitas agitações provocadas pela secularização do ocidente no século XIX, especialmente em virtude das influências da novidade do evolucionismo após da publicação da obra A Origem das Espécies, de Charles Darwin, em 1859. 

Devemos ter por Deus aquilo que se chama de “afeições ordenadas”. O termo “afeição” significa “1) Afeto, amor, amizade. 2) Apego, gosto, inclinação. 3) Parcialidade favorável” [1]. Esta inclinação à pessoa de Deus acontece em virtude do amor que temos por Ele, em reação ao amor de Deus; é por tal razão que devemos nutrir sentimentos corretos para que amemos a Deus da maneira que Ele é digno de ser amado: “[…] porquanto o amor de Deus está derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Romanos 5:5). C. S. Lewis, em sua obra A Abolição do Homem chama aquilo que nomeamos de “afeições ordenadas”, de “sentimentos justos”, no sentido de “sentimentos corretos e verdadeiros”; sentimentos estes que um Objeto Nobre merece porque reivindica sentimentos correspondentes à sua Majestade. Quanto a Deus, as reações que o homem deve ter, serão segundo os reflexos da Majestade de quem admiramos. Pelo fato de o Criador ter se revelado às criaturas que, por meio de sua graça redentora no coração regenerado, podemos nutrir sentimentos proporcionais às Divinas dignidades, como reação correta e sincera à majestade da Pessoa de Deus. Não adoramos a Deus para nos sentirmos bem; os desejos do homem devem estar na Pessoa de Deus, como o fim último de existência: “desejos corretos tinham a ver com a verdade externa. Algo verdadeiro presente no universo, um absoluto fixo, requeria uma afeição correspondente por parte do ser humano” [2]. Foram estes os fundamentos destruídos no processo de secularização ocidental e é por este motivo que enfrentamos tantos problemas de ordem teológica: por causa de uma adoração débil. 

Os gregos afirmavam haver as paixões que emergem das entranhas (κοιλίᾳ, gr. Koilia), caracterizadas como necessidades e apetites impulsivos, sensuais e até animalescos; são as afeições desordenadas, as quais não dizem respeito a uma reação correta quanto a Deus. Há paixões que emergiam do peito (στήθος, gr. stethos) e do baço (σπλάγχνα  gr. splanchna): tais paixões produziam sentimentos nobres, os quais devem ser encorajados, como a honra, a nobreza, a coragem e a reverência [3]. Segundo De Bruyn, “Os gregos […] notavam que em toda disputa entre a cabeça (razão) e o estômago (apetite), o estômago sempre ganhava. Só conhecer o caminho certo não era o bastante para tornar um homem bom. Algo deveria fazer um trabalho de mediação entre a razão e o apetite: e esse algo era o peito (as afeições). Quando um homem era moldado para amar e desejar o que era nobre, isso fortalecia a razão contra as inclinações e ajudava a governar os apetites desenfreados. Em outras palavras: as afeições de um homem guiavam as decisões de sua mente” [4].

Neste mesmo sentido, as Escrituras nos lembram: “O temor do SENHOR é o princípio da sabedoria, e o conhecimento do Santo a prudência” (Provérbios 9:10); assim como um oleiro pode moldar um barro, precisamos obter o conhecimento de Deus para moldarmos os nossos sentimentos e darmos a Deus apenas um “culto racional” (Romanos 12:1). Devemos modelar nossos sentimentos mantendo a nossa mente nas coisas que são do alto: “se  ressuscitastes com Cristo, buscai as coisas que são de cima” (Colossenses 3:1); a razão para buscarmos as coisas que são de cima, é dada logo a seguir: “onde Cristo está assentado à destra de Deus” (Colossenses 3:1); é porque Cristo está nas alturas que São Paulo encoraja: “Pensai nas coisas que são de cima, e não nas que são da terra” (Colossenses 3:2). Segundo os gregos, os apetites das entranhas deviam ser governados; as Escrituras concordam com eles, mas vão mais além, e nos dizem que devemos não governar, administrar, mas mortificar e matar tais paixões carnais: “Mortificai, pois, os vossos membros, que estão sobre a terra: a fornicação, a impureza, a afeição desordenada, a vil concupiscência, e a avareza, que é idolatria” (Colossenses 3:5). Apenas conseguiremos obter vitória sobre tais paixões pela graça santificadora de Deus: “Nem tampouco apresenteis os vossos membros ao pecado por instrumentos de iniquidade; mas apresentai-vos a Deus, como vivos dentre mortos, e os vossos membros a Deus, como instrumentos de justiça. Porque, se viverdes segundo a carne, morrereis; mas, se pelo Espírito mortificardes as obras do corpo, vivereis” (Romanos 6:13; 8:13).

Diante disto, precisamos voltar a nossa atenção para a tragédia da igreja Moderna quanto às falsas emoções e reações erradas quanto a Deus. Os cristãos modernos são relativistas quanto aos sentimentos verdadeiros que Deus é digno, quando acreditam que eles mesmos determinam quais reações são corretas diante de Deus; no entanto, o padrão, o modelo, está fora de nós; o modelo de tais sentimentos está fora do crente, de maneira que devemos moldar nossos sentimentos às “coisas que são do alto”, e não ao nosso próprio entendimento, que é desta terra. A verdadeira contemplação de Deus e da realidade da beleza Divina não pode nos levar a reagir da maneira que reagiríamos a coisas banais; mas é justamente esta a reação dos cristãos modernos, o que nos leva à conclusão de que a beleza de Deus não está sendo apreciada pelos cristãos. Este tipo de cristão está cego. Ou os cristãos modernos amam a Deus de maneira errada ou amam a outro deus fabricado em seus próprios corações. Um deus que se contenta com uma adoração superficial e banal certamente não é o Deus das Escrituras: “A eles se tornem semelhantes os que os fazem, assim como todos os que neles confiam” (Salmos 115:8); o resultado de um correto conhecimento de Deus, ou melhor, quando conseguimos ter uma visão correta da beleza de Deus e Sua glória, o Ser Dele reflete em nós sentimentos nobres e belos, não sentimentos banais e animalescos. As Escrituras nos dizem que tipo de afeições Ele exige que nós tenhamos: “Agora, pois, ó Israel, que é que o SENHOR teu Deus pede de ti, senão que temas o SENHOR a teu Deus, que andes em todos os seus caminhos, e o ames, e sirvas ao SENHOR teu Deus com todo o teu coração e com toda a tua alma” (Deuteronômio 10:12). Diz ainda: “Uma coisa pedi ao SENHOR, e a buscarei: que possa morar na casa do Senhor todos os dias da minha vida, para contemplar a formosura do Senhor, e inquirir no seu templo” (Salmos 24:4). As afeições estão no centro de todo o cristianismo e faríamos bem em atentar para que nosso amor a Deus seja moldado à Sua excelência: “Amarás, pois ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento, e de todas as tuas forças; este é o primeiro mandamento” (Marcos 12:30).

Corretamente afirmou David De Bruyn sobre a necessidade de mantermos as três ortos para que conservemos viva a fé cristã e a repassemos pura às próximas gerações: 

“[…] Precisamos das três ‘ortos’. Ortodoxia sem ortopraxia é a fé morta da qual Tiago falou. Ortodoxia sem ortopatia é formalismo morto ou mesmo legalismo. Ortopraxia sem ortodoxia é pragmatismo indireto ou inovação. Ortopraxia sem ortopatia é farisaísmo morto e hipocrisia. Ortopatia sem ortodoxia é puro entusiasmo ou fanatismo. Ortopatia sem ortopraxia é sentimentalismo e puro emocionalismo”. [5]

Vamos fazer um pequeno exercício reflexivo à luz daquilo que temos estudado até agora. Este é um pequeno questionário para sua autoavaliação acerca das afeições religiosas:

Em várias igrejas é comum acontecer durante o serviço de culto a Deus, o chamado “momento de celebração”. Especialmente jovens participam destes momentos de “descontração”, notabilizados com ritmos dançantes, gritos, não júbilos de louvor, como “aleluia”, ou “glórias a Deus”, mas algo como “uhul” ou mesmo silvos; é comum, também, nestes mesmos momentos, pessoas estarem dançando, em pulos, umas com as outras, ou sós, fazendo “trenzinhos” que percorrem toda a igreja, etc. Toda essa variedade de coisas acontece num ato de suposta adoração a Deus. Diante de tudo aquilo que temos visto, gostaria que você respondesse com toda sinceridade do seu coração: 

1 – As reações acima mencionadas são exemplos de afeições ordenadas de quem está visualizando a Santidade e a beleza de Deus? Leia Isaias 6:1-5. 

(   ) Sim  (   ) Não

2 – Considerando as reações acima mencionadas, a Beleza, a Soberania e a Grandeza de Deus, quando de fato nos são reveladas, conduzem-nos a uma reação igual à que teríamos se participássemos de ambientes informais, casas de show ou uma festa com amigos, suscitando sentimentos impulsivos e paixões inferiores, ou refletem em nós sensações nobres e das partes mais elevadas do nosso ser? Evocariam nossa reverência ou irreverência? Leia Colossenses 3:8-11.

(   ) Sim  (   ) Não

3 – Estamos expressando adequadamente as dignidades Daquele a quem dizemos estar adorando, quando refletimos as reações acima mencionadas? Leia Salmo 29:1-4.

(   ) Sim | (   )  Não

4 – Nosso entendimento está completamente ciente de que, considerando as reações acima mencionadas, adoramos ao mesmo Deus que ordena que guardemos o pé quando entrar em sua presença? Leia Eclesiastes 5:1.

(   ) Sim (   ) Não

5. Através deste tipo de atitudes conseguimos comunicar aos incrédulos alguma diferença entre nós e eles, ao refletirmos, durante um suposto culto a Deus, os mesmos tipos de reações que eles teriam caso estivessem em outro ambiente festivo qualquer? 

(   ) Sim (   ) Não

Concluo trazendo à memória aquilo que disse o Nosso Senhor Jesus Cristo, citando o profeta Isaías: “Este povo se aproxima de mim com a sua boca e me honra com os seus lábios, mas o seu coração está longe de mim” (Mateus 15:8). Que o Senhor nos ajude para que sejamos fiéis e sinceros até a morte. Amém.

Notas

[1] AFEIÇÃO, in: Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Disponível em <https://priberam.pt/dlpo/afei%C3%A7%C3%A3o>. Acesso em: 15 abr. 2022.

[2] BRUYN, David De. A Igreja Conservadora. São Paulo, SP: Editora Batista Regular, 2015. p. 126.

[3] Todos estes conceitos foram expostos pormenorizada e magistralmente em: BRUYN. A Igreja Conservadora. p. 121-138.

[4] Ibid. p. 124-125.

[5] Ibid. p. 128.

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