No Brasil existe um pássaro que voa soberano sob tudo e todos, das nuvens observa as copas das árvores, o correr dos rios, a vida nas cidades e o cotidiano nos três poderes. Esse pássaro é cultuado por todos, de burocratas a cidadãos comuns, quase como se fosse uma entidade mística. Por vezes chega a se manifestar nas ações cotidianas, em pequenos atos, mesmo que inconscientemente.
Trata-se do Patrimonialismo, elemento fundante da nossa nação, presente no Brasil desde os tempos da Terra da Vera Cruz e verdadeira herança institucional nefasta do velho continente, brilhantemente estudado por Raymundo Faoro.
Há, no entanto uma espécie exótica, chamada liberdade, uma ave bela, mas incapaz de voar por muito tempo no nosso país. De baixo, na sua posição de coadjuvante, ela observa o patrimonialismo alçar voos longos e majestosos, ser admirado e seguido por Estado e Sociedade Civil. A impessoalidade da Lei, o mérito e a autonomia dão lugar ao personalismo na administração pública, ao clientelismo e ao dirigismo.
A ave liberdade alçou pequenos voos de franguinha ao longo da história brasileira: a independência do Brasil, a abolição da escravatura, a instituição de uma república, a adoção de uma economia de mercado, a consolidação da democracia, todas essas conquistas foram algumas demonstrações do belo voo de uma sociedade livre.
Mas mesmo esses voos são sabotados pelo patrimonialismo, que não cansa de depenar a liberdade. Tomemos por exemplo a independência que nos deu uma identidade própria e a possibilidade de uma monarquia parlamentar nos moldes ingleses, no entanto aqui criou-se a aberração do poder moderador e uma constituição imposta de cima para baixo pelo imperador (não estava satisfeito em ser meramente chamado de rei). Isso apenas para citar um exemplo, há outros como a lei de terras e lei do ventre livre, verdadeiros subterfúgios das elites políticas para manterem seus privilégios; os governos militares que se instauraram com o início da república; a presença de privilégios para o a elite do funcionalismo público em plena vigência da Constituição de 1988.
Em tempos recentes a ave liberdade nos legou bons voos como a consolidação da democracia, a valorização da dignidade humana, a abertura para o mercado externo, desestatizações necessárias, bons marcos legais e desenhos institucionais para o Estado. Contudo voos pequenos com amadurecimento lento e muitas vezes sabotados pelo pássaro dominante.
Não sou pessimista – considero essa posição profundamente equivocada e preguiçosa-, os voos da liberdade resultaram em avanços concretos, mas é nítido que interesses escusos e autoritários ainda teimam em existir, como se a sociedade liberal-democrata não fosse desejável e o pior, a ave patrimonialista é ambidestra usando suas duas patas para seguir lastimando nossa sociedade e banqueteando-se da coisa pública. De fato, enquanto nós não cuidarmos do belo pássaro da liberdade para que ele se desenvolva e alce voos longos seguiremos tendo as entranhas do nosso país dilaceradas pelo patrimonialismo.
Yzaahu Paiva – Advogado e Professor na Universidade Federal do Acre.