Os fiéis católicos estão proibidos de celebrar a Semana Santa nas ruas da Nicarágua. Mas a primeira Páscoa nasceu num contexto bem semelhante: um governante iníquo, ditador, que queria impedir o povo de Deus de adorá-lo publicamente.
No ano de 2023, os fiéis católicos foram proibidos de celebrar a Quaresma e a Páscoa nas ruas da Nicarágua.
A decisão do líder sandinista Daniel Ortega segue-se a um recente discurso seu, chamando a Igreja Católica de “máfia”, e também à condenação completamente arbitrária de Dom Rolando Álvarez, bispo de Matagalpa, a 26 anos de prisão por suposta “traição à pátria”.
Tais restrições à liberdade religiosa são uma constante nos regimes comunistas. Basta pensar na China, onde os cristãos ajudados pelo governo são obrigados a trocar as imagens de Cristo em suas casas por outras de Xi Jinping; ou na Coreia do Norte, onde o ditador Kim Jong Un já substituiu uma vez o Natal pela festa da própria avó.
Só que, muito antes do comunismo — e da própria religião cristã —, vale lembrar que a festa judaica da Páscoa nasceu justamente neste contexto: de um governante iníquo, ditador, que queria impedir o povo de Deus de adorá-lo publicamente.
Assim nasceu a Páscoa
Depois que José, o filho de Israel vendido por seus irmãos, trouxe-os todos para junto de si, no Egito, os judeus fixaram residência no lugar e não pararam de se multiplicar. Vendo que cresciam e os ultrapassavam em número, os egípcios começaram a persegui-los e escravizá-los. Foi então que Deus suscitou Moisés para libertar o seu povo da opressão. E, quando lhe apareceu na sarça ardente, pedindo que fosse falar com o faraó, para deixar os israelitas irem ao deserto, a justificativa que Deus mandou Moisés usar com o rei do Egito foi esta: “O Senhor, Deus dos hebreus, veio ao nosso encontro. Por isso, deixa-nos agora caminhar três dias desertos adentro, a fim de oferecer sacrifícios ao Senhor, nosso Deus” (Ex 3, 18).
Veja: ao longo de todo o diálogo de Moisés com Deus, este fala que vai tirar seu povo da servidão, e que o conduzirá a uma terra onde emana leite e mel. Mas o documento “oficial” do pedido ao faraó, por assim dizer, usa como justificativa nada menos que a liberdade de prestar culto a Deus: “Tu lhe dirás: ‘Assim diz o Senhor: Israel é meu filho, meu primogênito. Por isso, eu te ordeno que deixes ir o meu filho para servir-me” (Ex 4, 22-23).
Moisés e Aarão obedecem à ordem de Deus e dizem isso mesmo ao faraó: “Assim fala o Senhor, Deus de Israel: Deixa ir o meu povo, para que celebre uma festa para mim no deserto” (Ex 5, 1).
Todos conhecemos o resto da história. O faraó não dá ouvidos a Moisés e Deus manda, então, as famosas “dez pragas do Egito”, culminando a última na passagem do anjo exterminador pelas casas dos egípcios, matando-lhes todos os primogênitos; só os lares dos israelitas são preservados: o anjo do Senhor vê nos umbrais de suas portas o sangue do cordeiro e poupa-os da morte.
É a primeira Páscoa — e o termo significa isto mesmo: passagem, em referência à praga que chegava às portas dos israelitas, mas passava adiante.
“Não só de pão vive o homem”
Também o que se seguiu à instituição da Páscoa tem muito a ver com o que estão vivendo hoje os nicaraguanos.
Após o extermínio dos primogênitos, o povo de Deus finalmente consegue escapar às mãos do faraó. É aí que atravessa a pé enxuto o Mar Vermelho e chega ao deserto. Perambula então quarenta anos, e só mais tarde é que entra na Terra Prometida. Mas por quê?
Porque precisava aprender, via ardua, que “não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus” (Mt 4, 4) — uma frase que Jesus usa contra o tentador no deserto, mas que é de Moisés e se encontra no livro do Deuteronômio, como chave explicativa para todo o sofrimento que o povo de Israel vive em sua “quaresma”: “Ele te humilhou, te fez passar fome, te deu de comer o maná, que nem tu, nem teus pais conheciam, para te mostrar que não só de pão vive o homem, mas de tudo o que sai da boca do Senhor” (Dt 8, 3).
O contexto dessa lição de Moisés é bem fácil de entender: depois que foi liberto da escravidão, o povo de Israel só sabia reclamar de saudades das cebolas do Egito. Deus lhes fez chover maná e caírem sobre eles codornizes… Ou seja, não os desamparou. Mas eles não gostavam daquele alimento especial e sentiam falta da época em que viviam no Egito — porque, por escravos que fossem, pelo menos eles podiam “encher a barriga” com o que lhes agradava.
Então Deus lhes ensinou o que realmente importa — e o livro da Sabedoria repete de forma poética as palavras do patriarca Moisés:
E assim teus filhos queridos aprenderam, Senhor,
que não é a produção de frutos que alimenta as pessoas,
mas a tua palavra, que sustenta os que creem em ti.
Aquilo que pelo fogo não podia ser consumido,
imediatamente, aquecido por um mínimo raio de sol, se desfazia.
Isto, para que ficasse evidente que é preciso
antecipar-se ao sol para dar-te graças
e, desde o nascer da luz, prestar-te adoração.
Pois a esperança do ingrato se fundirá como a geada do inverno
e se perderá como água que escorre (Sb 16, 26-29).
Barriga cheia ou prato vazio?
À luz do que se está passando na Nicarágua, o que podemos dizer? Que continua a ser esta a grande tentação do homem: viver na escravidão, mas “de barriga cheia”, ou servir a Deus ainda que à custa de um “prato vazio” (representando aqui todo tipo possível de sacrifício).
Não que não seja possível adorar a Deus e ter comida na mesa, ao mesmo tempo; e a história do Holodomor, na Ucrânia, também mostra que se pode muito bem ficar sem os dois. Mas precisamos entender que existe sempre uma prioridade máxima, e não deve haver nenhuma dúvida de qual seja ela. Pois, se o nosso bem-estar e conforto materiais são mais importantes que Deus, então não só não somos dignos do Céu; tampouco podemos nos chamar homens — pois ignoramos o que há de mais nobre e elevado em nós mesmos, pensando que nosso estômago vem primeiro que nossa alma.
Em tantos lugares do mundo, por exemplo, onde a Rússia espalhou os seus erros — como previsto por Nossa Senhora de Fátima —, quantos não se entregaram alegremente aos inimigos de Deus, por vias “democráticas”, seduzidos justamente por promessas baixas de dar carne a toda uma população ou erradicar-lhe a fome? E a que preço se venderam? Ao preço de sua santa fé, de seus valores mais íntimos, de sua liberdade de culto e de consciência. Ao preço de bispos, encarcerados simplesmente por ser católicos, ou de vidas inocentes, ceifadas antes mesmo de virem à luz.
É triste dizê-lo, mas, centenas de anos depois, nós nos esquecemos das lições de Moisés e de Jesus no deserto. Para nós, aparentemente, é só de pão mesmo que vive o homem.
“Ah — alguém poderá dizer —, mas Jesus alimentou as multidões quando multiplicou os pães e os peixes!” Sim, claro, mas será que era só desse pão, terrestre, passageiro e perecedouro, que Jesus queria que os Apóstolos alimentassem as multidões quando disse a eles: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14, 16)? Ou não falou Ele expressamente, no início do discurso do pão da vida: “Trabalhai não pelo alimento que perece, mas pelo alimento que permanece para a vida eterna e que o Filho do Homem vos dará” (Jo 6, 27)?
O que está acontecendo na Nicarágua neste ano de 2023 — e que tem acontecido em todos os regimes anticristãos das últimas décadas — deve soar mais uma vez o alerta para nós todos: Não só de pão vive o homem! Os porcos têm suas lavagens e os urubus, suas carniças. Mas eles não têm Semana Santa. Os bichos não saem às ruas em procissão para cantar hosanas ao filho de Davi, nem para bater matracas de luto pela morte do Filho de Deus. A fé é própria do homem, muito mais que o alimento para o estômago (cf. 1Cor 6, 13).
E se não é para isto que existimos — para crer no Deus verdadeiro e louvá-lo com nossa vida; se não nos importamos em ter tolhida nossa liberdade mais fundamental — a de prestar culto a Ele —, então é porque já descemos há muito tempo ao nível dos animais; e pior: nem nos incomodamos com isso.