Ração mata cavalo avaliado em R$ 2 milhões em um dos maiores escândalos do país

Um dos casos mais chocantes da história recente da equinocultura brasileira veio à tona nos últimos meses. Um cavalo de elite, avaliado em mais de R$ 2 milhões, foi uma das vítimas fatais de um surto de intoxicação provocado pela ingestão de rações contaminadas da empresa Nutratta Nutrição Animal Ltda. O episódio expôs uma crise sanitária sem precedentes, que já contabiliza 645 mortes de cavalos em seis estados brasileiros e está sendo classificado por criadores, veterinários e autoridades como um dos maiores desastres da nutrição animal do país.

As primeiras mortes começaram a ser registradas no final de abril, mas foi entre maio e junho de 2025 que os casos se multiplicaram em ritmo alarmante. No epicentro do escândalo está a chácara Dia de Sol, localizada na zona rural de Guarulhos (SP), onde nove cavalos morreram após consumirem a ração da linha Foragge Horse, fabricada pela Nutratta. Os sintomas apresentados pelos animais foram devastadores: agressividade súbita, desorientação, alterações no sono, dificuldade de locomoção e comportamentos semelhantes à demência.

“Um dos cavalos rodava em círculos dentro da baia durante a noite. Uma égua tentava morder a parede. Era como se estivessem fora de si, completamente perdidos”, relatou Marcos Barbosa, comerciante e criador responsável pelo haras.

Segundo Barbosa, 30 animais do seu plantel chegaram a consumir a ração antes que o uso fosse suspenso às pressas, e os prejuízos financeiros já ultrapassam R$ 700 mil, sem considerar o valor afetivo e genético dos animais perdidos. Um dos cavalos mortos estava cotado em mais de R$ 2 milhões por sua linhagem nobre e excelente desempenho em competições da raça marchador.

Dono de cavalos em Gaurulhos suspendeu o uso da ração, mas cerca de 30 animais já tinham consumido o produto. — Foto: Arquivo pessoal

A toxina por trás do caos

A tragédia foi atribuída à monocrotalina, uma toxina produzida naturalmente por plantas do gênero Crotalaria, frequentemente encontradas em cultivos destinados à adubação verde. Essa substância é altamente hepatotóxica e neurotóxica, capaz de causar falência hepática e sintomas neurológicos irreversíveis em equinos, suínos, bovinos e até cães.

As análises laboratoriais, conduzidas pelos Laboratórios Federais de Defesa Agropecuária, confirmaram a presença da monocrotalina em amostras da ração produzida a partir de novembro de 2024. Segundo veterinários, uma vez que a toxina atinge o sistema nervoso, os animais passam a perder o controle dos movimentos, ficam com a cabeça baixa, se ferem ao colidir com paredes e, frequentemente, precisam ser submetidos à eutanásia devido ao nível extremo de sofrimento.

A médica-veterinária Marcella Batista, que perdeu dois cavalos em seu haras em Cabreúva (SP), afirma que não há cura para a intoxicação. “O máximo que conseguimos fazer é um tratamento de suporte, com antitóxicos e hidratação intensiva. Mesmo assim, muitos não resistem. É devastador”, lamenta.

Uma crise que se espalha

As mortes se alastraram para outras regiões. Até o início de julho, os estados com registros confirmados de óbitos foram:

Lista de animais intoxicados por ração contaminada

CidadeEstadoÓbitosPrenhezEmbriõesEm TratamentoEm Observação
1Águas de LindóiaSP60000
2AlumínioSP10000
3Artur NogueiraSP20010
4CabreúvaSP1400060
5CaçapavaSP22010
6Caçapava VelhaSP70170
7CampinasSP50020
8ConchalSP20060
9Elias FaustoSP1901900
10FrancaSP30910
11GuarulhosSP900210
12IndaiatubaSP400000
13IperóSP11000
14ItúSP2400042
15JacareíSP50050
16JarinuSP340010
17JundiaíSP50002000
18Mogi MirimSP50000
19PindamonhangabaSP30000
20PiracaiaSP7001332
21Porto FelizSP1400120
22Santo Antônio do PinhalSP100000
23São RoqueSP00020
24SorocabaSP172080
25SumaréSP20004
26VinhedoSP20003
27TaubatéSP20030
28TremembéSP10040
29IpiabasRJ20002
30ItaguaíRJ10000
31MangaratibaRJ40000
32ResendeRJ20050
33Rio de Janeiro (capital)RJ711024
34ValençaRJ10050
35Volta RedondaRJ320000
36Abre CampoMG00010
37CanápolisMG32010
38ContagemMG20000
39Diogo de VasconcelosMG40020
40FunilândiaMG300240
41GuaxupéMG50000
42GonçalvesMG10020
43GuaranésiaMG80000
44JaboticatubasMG00070
45Jander LuísMG10000
46JequeriMG80002
47MarianaMG70090
48MuzambinhoMG10000
49NanuqueMG00005
50Patos de MinasMG20010
51Pedro LeopoldoMG30000
52Ponta NovaMG10000
53UberlândiaMG1800400
54GoiâniaGO700000
55Aparecida de GoiâniaGO40025
56AtalaiaAL640000
57Bahia (vários municípios)BA400000
TOTAL645829366199

Levantamento feito com base em relatos de criadores de cavalos afetados em diferentes cidades brasileiras – atualizado até julho de 2025

Além das 645 mortes, há 368 animais em tratamento intensivo e 199 sob observação clínica, conforme levantamento organizado pela advogada Alessandra Agarussi, que representa centenas de criadores afetados. Ela coordena o grupo “Vítimas da Nutratta”, que já reúne centenas de depoimentos com relatos de perdas em diferentes haras e centros de treinamento.

“A ração não poupou ninguém. Matou potros e cavalos premiados. Desde mestiços sem valor comercial até campeões de genética com preço acima de R$ 2 milhões. É a maior tragédia da história da equinocultura brasileira”, declarou Agarussi.

Segundo a advogada, também foram relatadas mortes de cães e bovinos, o que pode indicar um impacto ainda mais abrangente da contaminação.

Medidas emergenciais e falhas na produção

Em resposta à crise, o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) determinou no dia 17 de junho de 2025 o recolhimento de todos os produtos destinados a equídeos produzidos pela Nutratta a partir de novembro do ano anterior. No dia 25 de junho, a pasta publicou um ofício oficial proibindo a comercialização das rações, após identificar falhas críticas no processo de produção:

  • Falta de separação de matérias-primas como feno, torta de algodão e resíduo de soja
  • Uso de ingredientes não autorizados para equídeos
  • Ausência total de rastreabilidade nos lotes produzidos

Essas falhas tornaram impossível isolar quais rações estavam ou não contaminadas, agravando o risco nacional.

O que diz a Nutratta

Em nota oficial divulgada no fim de junho, a Nutratta lamentou profundamente o ocorrido e afirmou estar colaborando com as autoridades federais, abrindo sua planta para fiscalização, fornecendo documentação técnica e revendo protocolos internos.

A empresa declarou que a presença da monocrotalina pode ter sido uma “fatalidade natural” devido à contaminação acidental por matérias-primas vegetais — como feno ou grãos — vindos de cultivos com crotalária. Apesar disso, a companhia obteve uma liminar na Justiça Federal que permite retomar parcialmente suas atividades, excluindo a produção de ração para equinos.

A Nutratta reforçou que não há comprovação definitiva de vínculo direto entre os casos de morte e os seus produtos, mas que vem adotando medidas como:

  • Reestruturação completa de layout fabril
  • Reforço na análise de matérias-primas
  • Revisão rigorosa na qualificação de fornecedores
  • Suporte técnico aos clientes prejudicados

Investigação criminal em andamento

O Ministério Público de São Paulo, por meio da Promotoria de Justiça do Consumidor, abriu uma investigação preliminar no dia 16 de junho, iniciada a partir de denúncias de mortes em um haras em Indaiatuba (SP). A promotoria exigiu que a Nutratta apresente provas de cumprimento das normas exigidas pelo Mapa e justificativas para o ocorrido. O Conselho Regional de Medicina Veterinária também foi acionado para colaborar.

A empresa tem um prazo de 20 dias para responder à notificação antes que seja instaurado um procedimento formal de responsabilização civil e criminal.

Uma ferida aberta no setor

A tragédia abalou profundamente o setor de cavalos de elite no Brasil. Criadores experientes, veterinários e até promotores de eventos equestres agora buscam alternativas para garantir a segurança alimentar dos animais. O temor de novos casos paira sobre o país enquanto os impactos econômicos e emocionais ainda estão longe de serem totalmente dimensionados.

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