1. Introdução
A regularização fundiária no Brasil é um mecanismo jurídico-urbanístico de alta complexidade, que envolve não apenas a formalização da posse e da propriedade, mas também a integração dos espaços informais ao ordenamento urbano, com plena observância à função social da propriedade, ao direito à moradia e à sustentabilidade ambiental.
A promulgação da Lei nº 13.465/2017, aliada à normatização registral infralegal e ao tratamento jurisprudencial dos tribunais superiores, proporcionou um marco normativo mais robusto, ainda que desafiador em sua aplicação prática. Este artigo propõe uma abordagem técnica e aprofundada sobre o tema, a partir da leitura sistemática da legislação, doutrina especializada e prática forense.
2. Conceituação e Fundamentação Jurídica
2.1. Regularização Fundiária como Instrumento da Política Urbana e Agrária
A regularização fundiária é um instituto de natureza multidisciplinar, inserido no contexto da política urbana (art. 182 da CF/88) e agrária (art. 184), devendo ser compreendida à luz de diversos dispositivos constitucionais e infraconstitucionais, como:
Função social da propriedade (arts. 5º, XXIII e 170, III da CF);
Direito à moradia (art. 6º da CF);
Direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225 da CF);
Direito à cidade e à propriedade urbana regular (Estatuto da Cidade – Lei nº 10.257/2001).
3. Regularização Fundiária Urbana: Estrutura Normativa e Procedimental
3.1. Marco Legal: Lei nº 13.465/2017
A Lei nº 13.465/2017 consolidou e sistematizou os instrumentos da Regularização Fundiária Urbana (Reurb), substituindo os regimes anteriores e criando uma nova lógica jurídica e procedimental, especialmente ao inovar com:
A CRF – Certidão de Regularização Fundiária como título hábil ao registro imobiliário;
O Direito Real de Laje (arts. 25-A e ss. da LRP);
A legitimação fundiária e de posse como modalidades de aquisição originária da propriedade;
A usucapião administrativa, ampliando o escopo da usucapião extrajudicial (art. 216-A da LRP).
3.2. Modalidades de Reurb
A Reurb pode ser classificada, conforme o art. 13 da Lei nº 13.465/2017, em:
Reurb-S (Social): Para populações de baixa renda, com previsão de gratuidade de taxas e registro.
Reurb-E (Específica): Aplicável a ocupações de perfil diverso, sem isenções.
Essa divisão implica diferenciação em termos de procedimento, incentivos e responsabilidades, sendo competência do Município a classificação do núcleo urbano a ser regularizado.
3.3. Etapas Procedimentais
O processo de Reurb segue uma lógica procedimental delineada nos arts. 14 a 25 da Lei nº 13.465/2017, compreendendo as seguintes fases:
a) Instauração:
Pode ser promovida por iniciativa do Município, de ofício ou mediante provocação de legitimados (ocupantes, associações, Ministério Público, Defensoria Pública etc.).
b) Levantamento Técnico e Jurídico:
Engloba planta e memorial descritivo georreferenciado, estudo fundiário, relatório ambiental, caracterização da ocupação e documentos dominiais ou de posse.
c) Análise e Aprovação Municipal:
O Município exerce papel central, com avaliação dos requisitos urbanísticos, ambientais e jurídicos, podendo aprovar projetos e definir as diretrizes da regularização.
d) Emissão da CRF (Certidão de Regularização Fundiária):
Documento formal emitido pelo Poder Público que autoriza o registro da regularização no RGI, substituindo, para todos os efeitos, o registro do parcelamento do solo.
e) Registro Imobiliário:
A CRF é levada a registro, abrindo-se novas matrículas, desmembrando-se glebas e permitindo a titulação individualizada, inclusive com previsão de legitimação fundiária em nome do ocupante.
3.4. Aspectos Registrários
A Lei nº 6.015/1973 (LRP) foi profundamente modificada pela Lei nº 13.465/2017, com a introdução de dispositivos que permitiram:
O registro de unidades informais com base na CRF;
A criação de matrículas para lajes, passíveis de alienação e financiamento;
A legitimação fundiária como forma originária de aquisição;
O regime registral diferenciado para Reurb-S, com isenção de custas e emolumentos (art. 11, §5º da Lei nº 13.465/2017).
4. Regularização Fundiária Rural
4.1. Fundamento Legal
A regularização fundiária rural encontra disciplina principal na Lei nº 11.952/2009, alterada pela Lei nº 13.465/2017, e no Decreto nº 10.592/2020, aplicável especialmente a áreas da União ou sob gestão do INCRA.
Critérios para titulação em áreas públicas federais:
Ocupação anterior a julho de 2008;
Posse mansa e pacífica;
Comprovação de cultura efetiva da terra;
Limites máximos de até 2.500 ha (com variações conforme a área e o beneficiário).
4.2. Modalidades de Titulação
As modalidades incluem:
Concessão de direito real de uso (CDRU);
Cessão gratuita ou onerosa da propriedade;
Legitimação fundiária rural, como forma de aquisição originária da propriedade.
5. Análise Crítica e Desafios Práticos
Apesar do arcabouço normativo robusto, a aplicação da regularização fundiária no Brasil enfrenta entraves significativos:
5.1. Fragmentação Institucional
A multiplicidade de entes e órgãos (Municípios, INCRA, SPU, Cartórios, Judiciário, Ministérios Públicos) torna o processo lento e vulnerável a sobreposição de competências e omissões.
5.2. Capacitação Técnica Insuficiente
A ausência de corpo técnico capacitado nos Municípios compromete a elaboração de diagnósticos fundiários, projetos urbanísticos e a condução regular dos procedimentos.
5.3. Registro de Terras Incompleto
Grande parte das glebas ainda não está registrada no CRI ou apresenta sobreposição de títulos, registros cancelados ou matrículas inativas, dificultando a individualização dos lotes.
5.4. Conflitos com o Direito Ambiental
A regularização de áreas situadas em APPs ou UC exige compatibilização com a legislação ambiental, especialmente o Código Florestal (Lei nº 12.651/2012) e as decisões do STF (ADIs 4901, 4937).
6. Conclusão
A regularização fundiária é um instrumento estruturante para o ordenamento territorial, a segurança jurídica da posse e da propriedade, e a realização dos direitos fundamentais à moradia, à cidade e à dignidade humana.
Entretanto, sua efetividade depende de articulação federativa, capacidade técnica local, integração registral e planejamento intersetorial. É imprescindível que os entes federativos avancem na institucionalização de núcleos técnicos de Reurb, digitalização dos acervos fundiários, e criação de sistemas integrados de informação territorial.

Lucas Oliveira é bacharel em Direito, atua como assistente jurídico e é colaborador no Escritório Perazzo – Advogados Associados.