O impacto do desastre no Rio Grande do Sul ainda está sendo mensurado, mas suas consequências irão muito além do aumento no rombo fiscal do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) – que bem antes da tragédia das cheias já se aproximava dos recordes da pandemia de Covid-19.União, estados, municípios e estatais acumularam déficit nominal de R$ 999 bilhões em um ano, segundo dados atualizados até março pelo Banco Central – muito próximo do rombo recorde de R$ 1,017 trilhão atingido em janeiro de 2021.Com as despesas necessárias para o socorro e a reconstrução do Rio Grande do Sul, um estudo da consultoria BRCG indica que a despesa primária do governo central deve aumentar entre 0,6% e 1% do Produto Interno Bruto (PIB), o que significaria gastos de até R$ 117,8 bilhões. Por enquanto, o governo incluiu em suas contas um gasto de R$ 13 bilhões.
As estimativas da BRCG foram baseadas em eventos de proporção semelhante, como as chuvas na região serrana do Rio de Janeiro em 2011, o rompimento da barragem em Brumadinho (MG) em 2019 e o furacão Katrina, nos EUA, em 2005.
“A tragédia vai dar uma misturada geral no cenário macroeconômico, com impacto fiscal, no PIB e na inflação. E vai aumentar a incerteza num momento de redução de cortes de juros pelo Banco Central, e com uma cereja no bolo: o fato de estarmos num ano eleitoral”, avalia Lívio Santos Leite Ribeiro, sócio da BRCG e pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre/FGV). “Mas, enfim, precisa gastar, não foi uma escolha.”
Reconstrução do RS é compartilhada, mas cobranças tendem a recair sobre a União
Em que pesem as diferenças de natureza e amplitude, as dificuldades e os riscos políticos inerentes à gestão da catástrofe climática gaúcha podem ser comparados aos da crise sanitária iniciada em 2020, que mexeu no tabuleiro eleitoral brasileiro. O que leva ao questionamento se a tragédia no Sul pode ser uma espécie de “pandemia” para Lula – aqui entendida como evento de grandes proporções em termos humanitários e econômicos, que exige grande capacidade de mobilização e articulação, e sujeito a erros e críticas.Medidas de apoio às emergências têm sido providas por diversos atores públicos – nas esferas municipal, estadual e federal – e privados, por meio de empresas e sociedade civil. Mas a responsabilidade pelo encaminhamento das ações de reconstrução do Rio Grande do Sul deve recair, em última instância, sobre a União.”Na resposta a um desastre dessa proporção, a cobrança por ação maior tem de ser no governo federal”, avalia o cientista político João Lucas Moreira Pires, doutorando em Sociologia Política pela Universidade de Minho, Portugal. “É ele [o governo federal] que tem mais estrutura e competência para atuar, tem ferramentas e recursos, pessoal e técnico.”
Para coordenar a empreitada, o presidente Lula nomeou Paulo Pimenta (PT) – até então ministro da Secretaria de Comunicação (Secom) – como titular da Secretaria Extraordinária da Presidência da República para o Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul.
Pimenta deverá coordenar uma estrutura administrativa para ações de recuperação do estado devastado pelas inundações e será uma “ponte” de repasses do governo federal a prefeitos das cidades gaúchas e ao governador Eduardo Leite (PSDB).
A iniciativa foi criticada pela oposição, em especial por aliados do governador tucano, e, veladamente, por figuras próximas ao governo. Lula é acusado de politizar a tragédia no estado e querer catapultar o nome de Pimenta à sucessão de Leite – que, em segundo mandato, não pode concorrer em 2026.
Aliados do Planalto defenderam que a ligação do ex-ministro da Secom com o Rio Grande do Sul tornou a escolha quase “inevitável”. Pimenta nasceu na cidade de Santa Maria (RS), uma das mais afetadas pelas enchentes. Ele deverá permanecer na nova função até fevereiro do próximo ano, dois meses após o encerramento do estado de calamidade pública no estado, em 31 de dezembro de 2024.
Oportunismo político na tragédia traz riscos para Lula
Para o cientista político Sérgio Praça, da Fundação Getulio Vargas (FGV-SP), o oportunismo político traz perspectivas arriscadas para Lula.
“Não considero boa ideia para o governo a criação desse ministério extraordinário, considerando que Paulo Pimenta é um deputado federal muito agressivo e muito sectário. Ele é a cara do PT. Não tem problema ser petista. Mas numa posição politicamente tão sensível quanto essa, é uma escolha muito ruim, que pode dificultar o andamento do trabalho”, diz.
O risco, segundo ele, está em atrair os holofotes para o bem e para o mal: “Acho que o pensamento do Lula é que vai existir algum ganho político se ele for visto como salvador da situação. Eu honestamente não sei se este ganho político vai se concretizar”.
Moreira Pires vai na mesma linha de avaliação. “O desastre climático coloca em evidência aqueles que estão no poder, e essa atenção pode ser extremamente arriscada. Qualquer hesitação ou expressão mal escolhida pode ter efeitos catastróficos. Quem não se lembra da declaração ‘não sou coveiro’ de [Jair] Bolsonaro?”
Para o cientista político, com a polarização intensificada, cada ponto de popularidade torna-se crucial na disputa entre Lula e a direita. Mas ele acha improvável que o presidente obtenha um aumento significativo em sua avaliação por meio das medidas de auxílio ao Sul.
“O presidente parece estar agindo não para ganhar apoio, mas para evitar a perda de prestígio – o desgaste de imagem que certamente ocorreria em caso de inação do governo”, diz.
Moreira Pires lembra as críticas sofridas pelo governo Bolsonaro durante a pandemia. “A atuação de um líder diante de uma tragédia pode não ser suficiente para consagrá-lo, mas possui certamente o potencial de prejudicar sua carreira e sua reputação. A trajetória de Bolsonaro é um exemplo claro disso”, afirma.
Gestão de Pimenta na Secom foi marcada por polêmicas
Moreira Pires destaca as críticas que Pimenta vinha sofrendo em relação à sua gestão como ministro da Secom. “Em mais de uma ocasião a Secretaria se viu em meio a polêmicas por campanhas de publicidade, principalmente on-line, que destoavam do que deve ser a atuação de um órgão de governo”, observa.
As críticas vieram também de seus próprios pares e apoiadores do PT. Para muitos, a saída de Pimenta da Comunicação foi vista como uma oportunidade de mudanças na área, que vem sendo responsabilizada pelas queda na popularidade do presidente nas pesquisas. Por enquanto, a Secom é comandada interinamente pelo jornalista Laércio Portela, que era da equipe de Pimenta.
“Um ponto central na gestão de uma catástrofe de grande magnitude é uma elevada capacidade de liderança e resiliência do gestor responsável”, afirma Moreira Pires.
Na avaliação de Sérgio Praça, mesmo um gestor de “alto nível” teria dificuldades na empreitada de reerguer o Rio Grande do Sul. “O que nem o Pimenta nem o Leite são. Então, é tudo muito improvisado”, avalia. “Acho que falta um ‘Pedro Parente’ neste governo”, acrescenta, em referência à atuação do economista na gestão da crise elétrica de 2021, no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB).
Para Praça, a pergunta que paira no ar é se Lula tem se esforçado para achar pessoas com melhor condição e qualificação para gerir a tragédia gaúcha. “Eu respondo que não, não está. Ele teria instrumentos para fazer isso, seja nos quadros do governo ou fora. Poderia ser mesmo um quadro político, mas que não fosse extremamente sectário. Mas Lula não está agindo no sentido de resolver a crise”, diz.
A Gazeta do Povo contatou a assessoria do ministro Paulo Pimenta desde terça-feira (21), mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem. No domingo (19), Pimenta havia ironizado as críticas à sua nomeação em entrevista ao Canal do Barão, no YouTube.
“Vocês queriam o quê? Que o presidente Lula colocasse para coordenar isso alguém que não conhece o Rio Grande do Sul? Alguém que não tem trânsito dentro do governo?”, questionou em mensagem replicada em sua conta oficial no X (antigo Twitter).“É preciso ter alguém que possa falar com todo mundo, que possa falar com o governador, que tenha trânsito na bancada estadual, na bancada federal”, completou o ministro.