STF inventa leitura “socialista” do direito à propriedade rural

Os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) adotaram uma interpretação “socialista” do artigo 185 da Constituição Federal, contrariando o texto que diz expressamente que propriedades produtivas “são insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária”.

O STF julgou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) impetrada pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) contra a trechos da Lei da Reforma Agrária (Lei 8.269/1993). Para a CNA, a lei complementar confunde conceitos de utilização da terra e eficiência de sua exploração, acabando por dar tratamento igualitário a propriedades produtivas e improdutivas.

Por unanimidade, os ministros decidiram que a propriedade privada, mesmo produtiva, pode ser objeto de reforma agrária caso não cumpra sua função social. A inovação no entendimento se baseia numa releitura do parágrafo único, do mesmo artigo 185, que diz que “a lei garantirá tratamento especial à propriedade produtiva e fixará normas para o cumprimento dos requisitos relativos a sua função social”.

Segundo a Lei da Reforma Agrária, a função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, os seguintes requisitos: aproveitamento racional e adequado, uso adequado dos recursos naturais, cumprimento da legislação trabalhista e exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e trabalhadores.

Critério subjetivo fragiliza o direito à propriedade

Para advogados e juristas ligados ao setor agropecuário, o STF colocou critérios subjetivos à frente do quesito principal, que é o da produtividade da terra.

“Adotar como critério de desapropriação a função social é algo subjetivo, como é o laudo antropológico de área indígena, de quilombola e comunidade tradicional. É inseguro demais do ponto de vista de objetividade jurídica”, avalia a advogada Samantha Piñeda, especialista em Direito Socioambiental. “Se eu quiser, eu entro em qualquer propriedade rural e acho um problema ambiental. Imagina se isso for critério para desapropriação, estamos mortos”, acrescenta.

Na avaliação de Renato Buranello, do escritório VBSO Advogados e presidente do Instituto Brasileiro do Direito do Agronegócio (IBDA), a decisão do STF tem o potencial de criar um ambiente de instabilidade e insegurança jurídica, com efeitos prejudiciais à atividade produtiva no país.

“Faltam balizamentos, por exemplo, do que seria um aproveitamento racional e adequado da propriedade”, afirma Buranello. Para o jurista, criou-se um espaço para interpretação meramente subjetiva do que seja o uso não adequado em relação à legislação ambiental, mesmo quando não há comprovada violação da lei e efetivo prejuízo ao meio ambiente.Da mesma forma, seria muito genérico o critério de favorecimento do bem-estar dos proprietários e trabalhadores. “Há um condão interpretativo que pode levar à percepção de caráter subjetivista do efetivo cumprimento da função social da propriedade”, sublinha.

Regra deve ser a proteção da propriedade, diz jurista

O que o STF fez, segundo o jurista Daniel Vargas, professor da FGV e doutor em Direito pela Universidade de Harvard, foi inverter a lógica do sistema constitucional.

“Os critérios da função social fixados na Constituição são guias e limites para esta intervenção excepcional do estado. A regra é a autonomia privada. A exceção é a ingerência pública. A regra é a proteção do proprietário. A exceção é levantar o ‘véu da propriedade’ para fazer valer, excepcionalmente, a vontade pública sobre a vontade do particular. Isso ocorreria apenas se e quando o Estado provar violações específicas às exigências da função social”, argumenta.

Na prática, contudo, os ministros inverteram a leitura do preceito constitucional, colocando o que era acessório como mais importante, e o que era principal como secundário.

Tal entendimento já havia sido confrontado pelo jurista Ives Gandra Martins, citado no próprio voto do relator do caso, ministro Edson Fachin. Ao analisar o tema, anotou Gandra Martins: “A propriedade produtiva não é objeto de desapropriação, e se não estiver cumprindo sua função social, a lei determinará os requisitos para que venha a cumpri-la. Tal exegese é a única possível. Admitir que a propriedade produtiva poderia ser desapropriada, se não cumprisse a sua função social, é torná-la idêntica às propriedades improdutivas, fazendo com que o inc. II do art. 185 não tivesse rigorosamente nenhum valor”.

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