Devido à defesa que faço constantemente dos manifestantes de 08 de janeiro de 2023, que na praça dos três poderes, em Brasília, extravasaram suas emoções, numa espécie de catarse, uns de modo controlado e, uma minoria, de modo violento, em indesculpável vandalismo, de vez em quando sou obrigado a enfrentar o debate com pessoas que compraram a ideia absurda de tentativa de golpe, está abraçada pelo Sistema como boia para fazer sobreviver sua sanha persecutória ao ex-presidente Jair Bolsonaro.
Em alguns casos, são interlocutores evidentemente desonestos, que tentam sustentar a versão de que senhorinhas e idosos, muitos deles doentes, outros de Bíblia na mão, sem armas e sem coordenação, sem apoio de forças armadas, sem financiamento, sem estrutura de comando e controle, sem líder, enfim, apenas com suas vozes, pretenderiam tomar “violentamente” o poder e instalar um novo governo. Quando esse tipo se mostra, evidentemente, a conversa não flui, trata-se, por obvio, de um idiota útil, um militante cego pelos próprios interesses ou de um mau caráter certificado.
Em outros casos, a conversa rende um pouco mais porque o interlocutor NUNCA assume que havia ali os elementos necessários para um golpe de estado, mas, ainda assim argumenta num positivismo asqueroso que se o sistema jurídico diz que é, então deve ser, portanto, que a Lei se cumpra e os manifestantes, enquadrados como golpistas sejam punidos nos conformes. “O problema deles é coma lei”, dizem. Com estes, é possível gastar um tempinho para explicar o que se segue.
Fora do campo estritamente jurídico, quem melhor enquadra essa posição em defesa da prisão dos manifestantes porque a Justiça diz que sim, é Hannah Arendt. Se Noberto Bobbio “O Positivismo Jurídico” (1961), reconhecendo as limitações do formalismo, defendeu a necessidade de integrar à análise do direito uma reflexão sóbria sobre valores e propôs um positivismo crítico, Arendt, no livro fundamental “Eichmann em Jerusalém” (1960), no qual se dedica a examinar o julgamento do nazista, faz uma criteriosa cisão entre lei e moral, demonstrando como indivíduos e sistemas podem levar a cabo monstruosidades perfeitamente acobertadas pelo sistema judiciário.
Segundo a filósofa, é justamente a obediência cega à norma estabelecida que possibilita crimes hediondos, executados sob o cobertor do Estado. Guardadas as devidas proporções, defender o itinerário percorrido pelo STF contra aqueles manifestantes, que inclui a humilhante e forçada confissão de um crime não cometido, equivale a absolver Eichmann quando ele argumentou em Nuremberg que tudo o que fez era apenas por seguir ordens.
Essa gente de mentalidade deformada pelo fanatismo político, idólatra e permissiva, gerada em universidades e cultura moralmente frouxas, de bom grado segue leis apartadas da moral desde que signifique algum avanço em seus propósitos. A lei diz que SIM, argumentam. Não sabem que a Lei foi feita ou, no caso em tela, interpretada e reinterpretada para dar vez ao SIM? Eles sabem, mas, se é pelo objetivo político demarcado, o mal dos fins é suportável e o sofrimento daquelas pessoas não importa. No máximo serão considerados efeitos colaterais.
Desde sempre, muitas vezes a lei serviu de escudo para a injustiça. Será preciso lembrar a crucificação de Cristo, a morte de Sócrates, de Galileu…? Durante a revolução francesa, o terror jacobino, acobertado pela Lei dos Suspeitos e pela Lei 22 prairial, matou em um ano mais de 16 mil apenas na guilhotina, muitos pelo crime de “mentir” contra a revolução – equivalente às “fakenews” de hoje.
As atrocidades do Nazismo, como assinalou Hannah Arendt em sua elaboração sobre a banalidade do mal, contaram com essa genuflexão das pessoas à tirania positivista jurídica que embasa e, muitas vezes, obriga a normalizarem a maldade quando praticada contra o inimigo. No fundo, tal iniquidade tem a mesma natureza desse consentimento que parte da sociedade brasileira oferece ao Judiciário, contra direitos elementares como o de manifestação, mais precisamente contra os presos em 08 de janeiro de 2023, muitos deles apenas curiosos que foram transformados em “golpistas”. É preciso que essa absurdidade seja barrada, é preciso um momento de serenidade antes que a população brasileira, já empanturrada da violência do dia a dia, a considere banal.
Se cada brasileiro é neste momento chamado no recôndito de sua consciência a julgar os presos de 08 de janeiro de 2023, que o faça conforme sua moral individual, distinguindo entre o certo e o errado. Não cabe perguntar o que é legal e o que é ilegal em um sistema que dá cambalhotas e cavalos de pau conforme a vontade de um ou outro ministro do STF. Como argumentou Hannah Arendt contra Eichmann, ele não poderia ter perdido inteiramente seu poder discricionário e se escudar na ordem superior – ordem legal, diga-se, para dar curso às atrocidades contra os judeus. Quando moral e Lei estiverem em conflito, é a moral que deve ser seguida.
Valterlucio Bessa Campelo escreve às segundas-feiras no site AC24HORAS, terças, quintas e sábados no DIÁRIO DO ACRE, quartas, sextas e domingos no ACRENEWS e, eventualmente, no site Liberais e Conservadores do jornalista e escritor PERCIVAL PUGGINA, no VOZ DA AMAZÔNIA e em outros sites.