O governo, digo, seus apoiadores, reuniram no último domingo, em algumas cidades um número considerável de manifestantes para berrar em defesa da prisão de Bolsonaro e todo aquele milhar de inocentes a quem denominam de golpistas. É um enredo macabro de artistas e militantes, eles mesmos anistiados pelos crimes que cometeram (sim, à luz da lei vigente eram crimes), alguns regiamente indenizados e pendurados nos cofres públicos até o dia de hoje.
Artistas do quilate de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque, que embalaram a nossa juventude com poesia, hoje servem ao governo pagador da lei Rouanet com o serviço vil de porta voz da junta que nos governa. Nenhum deles se deu ao trabalho de visitar o presídio onde vivem sob tortura contínua, mulheres, idosos e doentes, mas repetem o mantra “sem anistia” que em seus termos carrega intolerância, vingança e sadismo, além de uma injustiça abissal.
Acompanhando o cortejo maldito, dezenas de artistas e sub-celebridades da rede globo, principalmente, denotando que também entre eles, o exemplo vem de cima. Qual daqueles jovens não se sente bem entre tais ícones da música e das artes em geral? Todos querem uma ponta no enredo perverso que se desenvolve na arena pública.
Espera-se que do mundo artístico emane sempre uma nuvem de cultura, um bafo de sabedoria, um olhar que reflita a complexidade do mundo real. Ledo engano. Pelo menos, no caso brasileiro, parece o contrário. Toda essa gente se apegou à mais rasa interpretação da conjuntura política e amplificou a voz da ditadura judicial em implantação. Espelhando os nazistas, perderam o pensamento crítico e obedecem a ordens. “Se o STF diz, é porque está na lei e lei é para ser cumprida”. Depois da Segunda Guerra, no julgamento dos nazistas em Nuremberg, como bem assinalou a filósofa judia Hannah Arendt, ficou, por isso, demonstrada a banalidade do mal. Eles apenas obedecem a ordens e se sentem em paz com isso, não importando se aquelas mulheres e homens estão aos poucos morrendo na papuda ou fora dela, assim como morreram os judeus em campos de concentração. Aquela gente reunida apenas obedece ao assobio dos mestres de cerimônia, todos milionários e inatingíveis. Não precisam pensar.
E nem precisa esforçar-se muito. Basta algumas horas dedicadas a Voltaire em sua obra “O tratado sobre a tolerância”, para verificar que sob o ataque fanático a uma família pode se esconder bem mais que a punição de um crime. Ao final, Voltaire nos presenteia com a célebre “Oração a Deus”, cujo trecho final deixo ao leitor com um pedido para reflexão:
“Que todos os homens se lembrem de que são irmãos! Que tenham em horror a tirania exercida sobre as almas, como execram o roubo dos frutos do trabalho e da paz! Se os flagelos da guerra são inevitáveis, não nos odiemos, não nos dilaceremos uns aos outros no seio da paz, e empreguemos o instante da nossa existência para bendizer igualmente, em mil línguas diversas, do Sião à Califórnia, a tua bondade que nos deu esse instante”.
Se o leitor acha que não é o caso de trazer Deus para a conversa, recorra ao imperativo categórico que é o princípio fundamental da ética kantiana. “Age apenas segundo uma máxima que possas ao mesmo tempo querer que se torne uma lei universal”. Vale dizer, você aplicaria aos manifestantes de 08 de janeiro as mesmas sanções, o mesmo processo, o mesmo rigor, a mesma régua, em qualquer caso sobre a terra, ou, o fato de defenderem a “causa errada” os obriga a pagarem mais caro?
Kant disse para “Agir de tal modo que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e ao mesmo tempo como fim e nunca simplesmente como meio”. Significa que a humanidade e, portanto, a desumanidade, não deve ser seletiva e aplicada como meio para alcançar qualquer objetivo. Ela é um fim em si mesmo, ultrapassando, por isso, dosagens convenientes.
Não é difícil entender se o leitor ou qualquer outro se dispuser a pensar. É certo que em rebanho, movido pela máquina governamental, pela mídia acadelada que temos, torna-se cada vez mais difícil e doloroso pensar e, quem sabe, mudar ou amenizar o impulso punitivo. Contudo, não custa tentar. Esqueça o que todos dizem e responda a si mesmo: É justo, você adotaria em todos os casos da vida, a régua que pune com 17 anos de cadeia aquelas mulheres de 08 de janeiro para, através desse patamar, alcançar aquele que o sistema corrompido declara golpista? Chame ao discurso a sua consciência e aja conforme tal.
Está em debate e será posto para votação, segundo o presidente do Senado, o projeto de anistia/dosimetria contra o qual se insurge o governo e seus lacaios culturais em transe no último domingo. Teremos a oportunidade de saber como se comportam nossos parlamentares e, intimamente, de sossegar da angústia que nos causa a INJUSTIÇA. Que Voltaire prevaleça, e que o imperativo categórico de Kant não seja afastado pela banalidade do mal.
Valterlucio Bessa Campelo escreve semanalmente nos sites AC24HORAS, DIÁRIO DO ACRE, ACRENEWSe, eventualmente, no site Liberais e Conservadores do jornalista e escritor PERCIVAL PUGGINA, no VOZ DA AMAZÔNIA e em outros sites. Seu último livro “Arquipélago do Breve” encontra-se à venda através de suas redes sociais e do e-mail valbcampelo@gmail.com.


