Tão certo quanto a bateria de fogos no réveillon, as águas do rio Acre sobem e inundam as partes mais baixas da cidade de Rio Branco, afetando basicamente as populações mais pobres já acostumadas a perdas e ao movimento em direção ao parque de exposições, anualmente transformado em alojamento. A rigor, a cheia do rio nem deveria ser notícia. Diria que a verdadeira manchete poderia ser: Inação do poder público permite novas perdas e sofrimento.
Sim, porque dado que o problema perdeu o caráter eventual e passou a ser crônico, de causas, período e efeitos conhecidos, somente o descaso, a omissão ou incapacidade podem explicar a repetição ano a ano dessa situação lamentável. O que aconteceu com todos aqueles planos, visitas de ministros, voos de observação, relatórios e promessas? Foram para o cesto de lixo ou estão engavetados na mesa de algum burocrata ou gestor desatento? Eu mesmo já produzi estudos em relação às inundações.
Nos últimos 50 anos, o Estado do Acre foi atingido por enchentes de grande vulto que ocasionaram grandes prejuízos de ordem econômica e social. Dentre várias enchentes ocorridas podem ser citadas as de 1972, 1974, 1978, 1982, 1984, 1986, 1988, 1991, 1997, 1999, 2006, 2009, 2010, 2011, 2012, 2013, 2014 e 2015, 2021, 2022, 2023 e 2024, sendo que, em 2015, o Rio Acre atingiu sua maior cota histórica de 18,40m. Dá para dizer que é um fenômeno? Só na mente de um desavisado.
Dos 22 municípios acreanos, pelo menos 17 estão sujeitos a enchentes graves, dado que foram implantados nas margens dos rios em função do processo histórico de ocupação regional, que tinha na navegação fluvial a única via de comunicação. O próprio poder público, seus departamentos, escolas, postos de saúde, delegacias etc., ao longo do tempo foram sendo instalados no perímetro próximo às margens dos rios, formando adensamentos urbanos em cotas baixas se considerada como referência as margens dos rios.
Da mesma forma, os agricultores foram expandindo suas moradias e atividades em áreas próximas, contando evidentemente com o regime natural e histórico de cheias e vazantes, de modo que graves alterações no ritmo e intensidade das chuvas implicam severas inundações e grandes prejuízos.
Em 2024, mais de 10% dos domicílios do Acre foram de algum modo atingidos pelas cheias. Em Brasiléia, o índice chegou a 40%. Sabem o que é isso? Sabem sim. Todos nós sabemos, as marcas ainda estão por lá, mostrando além do nível da água a inoperância. As causas do drama anual que normalmente levam políticos aos palanques são conhecidas. Vejamos algumas delas:
- Ocupação histórica sem ordenamento fundiário ou diretivas urbanísticas nas margens dos rios e igarapés e em áreas de cotas baixas, o que amplia os riscos de inundações;
- Forte conversão para a produção agropecuária de áreas de floresta (mata ciliar) nas margens dos rios e igarapés;
- Intensificação do processo de erosão das margens dos rios, com evidente queda de barranco e aumento de sedimentos nos leitos dos rios, tornando-os mais rasos e obrigando o sistema a elevar-se aos níveis de transbordamento;
- Descuido histórico quanto à precariedade dos sistemas de drenagem urbana, o que em vista do crescimento populacional, pavimentação etc., implica em maior e mais veloz fluxo hídrico;
- Deposição de despejos, lixo e entulhos industriais que vão encontrar nos rios e igarapés seu destino, obstruindo canais ao longo do curso;
- Total desprezo em relação a uma política efetiva de saneamento e desenvolvimento urbano, proporcionando o crescimento exponencial de fatores indutores de fragilidades frente à alta pluviosidade;
- Inexistência de uma política de habitação que ofereça a sociedade, especialmente aos mais pobres, espaços de moradia digna, saneados, urbanizados e distantes das cotas baixas, portanto, infensos aos alagamentos;
- Baixo nível de educação ambiental, especialmente em relação aos danos potenciais das mudanças climáticas na vida do cidadão e à capacidade de resiliência da sociedade em geral, acerca das medidas necessárias de enfrentamento;
- Inexistência de um sistema eficiente de gestão de riscos e de medidas de prevenção, monitoramento, ação imediata e controle dos danos decorrentes de alterações hidrológicas significativas.
Pergunta-se: O que foi feito efetivamente desde 1970 para remover ou mitigar cada uma dessas causas? Não precisa esforço para responder, basta ver as planilhas orçamentárias. Que tal ver as planilhas das emendas parlamentares? Qual o percentual dos recursos foi destinado ao enfrentamento dessas questões? Em 2026 teremos a oportunidade de cobrar investimentos que respondam a esse desafio que, aliás, impõe atenção prioritária do governo federal. Aquele mesmo que gasta bilhões em uma COP fracassada tentando mudar o regime de chuvas e não cuida do estrago que ela faz na vida dos mais pobres. Pensem nisso.


