Cineastas viajam por 40 destinos, entre eles o Brasil, para entender os impactos da pecuária no meio ambiente, na economia e na cultura global.
melhor em um mundo sem vacas? Essa pergunta moveu e guiou Michelle Michael e Brandon Whitworth, ambos premiados cineastas norte-americanos, a viajarem a 40 destinos ao redor do mundo, durante três anos, em busca de respostas. O resultado deste trabalho é o documentário “Um mundo sem vacas”.
Logo no início do trailer, um alerta é feito: “o equilíbrio da natureza está em risco. Nosso planeta está sob ameaça. E, no centro disso tudo, está um animal: a vaca”. À primeira vista, a narrativa parece que seguirá com tons de críticas à produção agropecuária — com o agro sendo apontado como vilão das emissões de gases poluentes e que, para salvar o planeta, bastaria eliminar a pecuária. Porém, o que os cineastas fazem é justamente questionar essa visão.
Em conversa com o Agro Estadão, Michelle Michael contou que a motivação do trabalho surgiu de uma inquietação após visitar diversas fazendas. “A gente se perguntava se não estava deixando passar alguma coisa. Porque não é possível ter tanta narrativa negativa circulando…”, disse.
Ela ressaltou que o debate sobre os impactos da pecuária ocorre ainda em meio a um ambiente de desinformação, amplificado pelas redes sociais. “Qualquer pessoa pode falar qualquer coisa, a qualquer momento. E aí você entra numa espiral, num buraco sem fim de mais e mais informações negativas, que muitas vezes não são verdadeiras”, salientou. “Queríamos, genuinamente, responder à pergunta: ‘Estaríamos melhor em um mundo sem vacas?’ E, olha, essa é uma conversa cheia de nuances”, complementou.
Nessa conversa cheia de complexidades, os cineastas dão voz a cientistas, pecuaristas, ambientalistas e especialistas em solo e clima.
Em um trecho do trailer, uma das entrevistadas, representando o lado crítico, alerta que, se as pessoas continuarem consumindo produtos de origem animal na escala atual, as mudanças climáticas vão se agravar. Porém, na sequência, surge a contraposição, com outros especialistas destacando que muitas pessoas dizem “é só acabar com o gado e plantar vegetais”. Mas isso ignora o todo.
Um dos pontos explorados no documentário é como uma pecuária bem manejada não apenas reduz impactos, mas também pode ser parte da solução no enfrentamento das mudanças climáticas. Além do mais, a produção revela ainda que, sem vacas, muitos sistemas agrícolas, econômicos e sociedades ao redor do mundo iriam à ruína.
Um dos casos relatados é no Quênia, país localizado na África Oriental, onde comunidades dependem exclusivamente do alimento de cerca de cinco vacas para o seu próprio sustento. “Esse é o modo inteiro de vida. Quando você fala em um mundo sem vacas, significa tirar aquelas três ou cinco vacas da família. E, sem elas, toda a comunidade morre, porque esses animais sustentam todo o sistema econômico local”, ressaltou Brandon Whitworth, também em conversa com o Agro Estadão.
Além dos impactos sociais e econômicos, os cineastas fazem questão de trazer para o debate alguns dados. Um deles é a estatística da Organização das Nações Unidas (ONU) apontando uma população de 10 bilhões de pessoas em 2050. Com isso, será necessário produzir, nos próximos 30 anos, a mesma quantidade de alimento que foi produzida nos últimos 10 mil anos da história humana — com o gado tendo participação essencial nessa produção.
E, embora a pecuária seja frequentemente apontada como uma das maiores fontes de emissões de gases de efeito estufa, dados da ONU e do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) mostram que os combustíveis fósseis respondem por 78% das emissões globais, enquanto o gado representa cerca de 7%. “Muitas vezes, o impacto do metano gerado pela pecuária é superestimado fora de contexto, o que pode levar a distorções no debate. Por isso, é fundamental considerar esses números dentro de uma visão mais ampla, algo que o documentário procura evidenciar”, esclarece Brandon.
Imensidão da pecuária brasileira
O Brasil, maior exportador mundial de carne bovina, foi um dos países visitados por Michelle e Brandon durante a gravação do documentário. Por aqui, os cineastas afirmaram ter encontrado, além de uma imensidão de pastagens, uma esperança, diante do potencial de produção do país.
O amor dos produtores brasileiros pelo terreno e pelas pastagens foi um dos aspectos observados por Michelle. Segundo ela, a sustentabilidade está ligada à rentabilidade e à sobrevivência dos produtores, que demonstram um cuidado especial com a terra. “Senti que esses produtores realmente se importam com o terreno e com os animais, e estão fazendo o melhor para produzir o que vamos comer”, contou.
Brandon Whitworth complementa ressaltando que a história do Brasil é, sobretudo, uma história de esperança. “Há um enorme potencial para produzir carne de forma mais eficiente e de melhor qualidade”, afirmou. Para ele, o debate sobre a pecuária não é preto no branco, mas cheio de singularidades.
Uma dessas particularidades é justamente a vasta extensão de áreas produtivas no país e a diversidade territorial, que se destacam como oportunidade e desafio. De acordo com os cineastas, uma das adversidades é a produção em áreas remotas, como no bioma Amazônia.
Nessas regiões, pecuaristas lidam com dificuldades que vão além da tecnologia, incluindo a falta de conhecimento básico sobre manejo e cuidado animal. Isso, em alguns casos, impacta a produtividade do rebanho. “Nestes casos, não se trata de impor um modelo de produção de um país para outro. Cada lugar tem que produzir comida de acordo com as condições do terreno, o que está disponível e como tudo funciona localmente”, argumenta Michelle, citando como exemplo o sistema de confinamento adotado nos Estados Unidos.
Ainda sobre a produção pecuária na Amazônia, Brandon recorda as críticas feitas ao setor, colocando os pecuaristas como responsáveis pelo desmatamento. Porém, ele pondera que a realidade, muitas vezes, é abafada por notícias mais simples e sensacionalistas que são mais fáceis de propagar. Por isso, ele defende que é necessário construir uma narrativa equilibrada e impactante, que reúna todos os atores para avançar de maneira positiva. “Quantos lugares no mundo ficariam sem comida se o Brasil parasse de produzir?”, questiona.
Mundo sem vacas — continuação
Os cineastas Michelle Michael e Brandon Whitworth seguem comprometidos em aprofundar a discussão iniciada no documentário “Um mundo sem vacas”, que custou aproximadamente US$ 1 milhão, sendo uma produção do Planet of Plenty, plataforma da Alltech, empresa global de nutrição animal.
Para isso, a dupla voltou ao Brasil nas duas últimas semanas de maio para percorrer fazendas, dialogar com mais produtores — inclusive pecuaristas mulheres — e pesquisadores, em busca de ampliar temas que não couberam nos 85 minutos do documentário lançado há cerca de um ano.
Como parte dessa continuação, os cineastas querem produzir materiais complementares — como textos, podcasts e conteúdos educativos — que ficam disponíveis no site worldwithoutcows.com. O objetivo, segundo eles, é expandir o debate e oferecer uma visão mais precisa sobre os sistemas de produção e os desafios da sustentabilidade no campo.
Atualmente, “Um mundo sem vacas” está sendo exibido em feiras e outros eventos. Quem quiser participar de uma exibição pode acessar mais informações aqui.